Meu leitor, o sucedido em Lajes do Caldeirão é caso de muito ensino, merecedor de atenção. Por isso é que me apresento fazendo esta relação.
Vivia em dito arraial do país das Alagoas um rapaz chamado João cuja força era das boas pra sujigar burro bravo, tigres, onças e leoas.
João, lhe deram este nome não foi de letra em cartório pois sua mãe e seu pai viviam de peditório. Gente assim do miserê nunca soube o que é casório.
Ficou sendo João, pois esse é nome de qualquer um. Não carece excogitar, pedir a doutor nenhum, que a sentença vem do Céu, não de lá do Barzabum.
De pequeno ficou órfão, criado por seus dois manos. Foi logo para o trabalho com muitos outros fulanos e seu muque, sem mentira, era o de três otomanos.
Na enxada, quem que vencia aquele tico de gente. No boteco, se ele entrava pra bochechar aguardente, o saudavam com respeito Deus lhe salve, meu parente.
João moço não enjeitava parada com sertanejo. Podiam brincar com ele sem carregar no gracejo. Dizia que homem covarde não é cabra, é percevejo.
Um dia de calor desses que tacam fogo no agreste, João suava que suava sem despir a sua veste. Companheiro, essa camisa não é coisa que moleste?
lhe perguntou um amigo que estava de peito nu. E João se calado estava nem deu pio de nambu. Ninguém nunca viu seu pêlo, nem por trás do murundu.
João era muito avexado na hora de tomar banho. Punha tranca no barraco fugindo a qualquer estranho. Em Lajes nenhum varão tinha recato tamanho.
João nas últimas semanas entrou a sofrer de inchaço. Mesmo assim arranca toco sem se carpir de cansaço. Um dia, não güenta mais, exclama: O que é que eu faço?
Os manos vendo naquilo coisa mei' desimportante, logo receitam de araque meizinha sem variante para qualquer macacoa: Carece tomar purgante.
João entrou no purgativo louco de dor e de medo se entorcendo e contorcendo na solidão do arvoredo pois ele em sua aflição lá se escondera bem cedo.
O gemido que exalava do peito de João sozinho alertou os seus dois manos que foram ver de mansinho como é que aquele bravo se tornara tão fraquinho.
No chão de terra, essa terra que a todos nós vai comer, chorava uma criancinha acabada de nascer, E João, de peito desnudo, acarinhava este ser.
Aquela cena imprevista causou a maior surpresa. O que tanto se ocultara se mostrava sem defesa. João deixara de ser João por força da natureza.
A mulher surgia nele ao mesmo tempo que o filho, tal qual se brotassem junto a espiga com o pé de milho, ou como bala que estoura sem se puxar o gatilho.
Se os manos levaram susto, até eu, que apenas conto. E o povo todo, assuntando a estória ponto por ponto, ficou em breve inteirado do que aí vai sem desconto.
Nem menino nem menina era João quando nasceu. A mãe, sem saber ao certo, o nome de João lhe deu, dizendo: Vai vestir calça e não saia que nem eu.
À proporção que crescia feito animal na campina, em João foi-se acentuando a condição feminina, mas ele jamais quis ser tratado feito menina.
Pois nesse triste povoado e cem léguas ao redor, ser homem não é vantagem mas ser mulher é pior. Quem vê claro já conclui: de dois males o menor.
Homem é grão de poeira na estrada sem horizonte; mulher nem chega a ser isso e tem de baixar a fronte ante as ruindades da vida, de altura maior que um monte.
A sorte, se presenteia a todos doença e fome, para as mulheres capricha num privilégio sem nome. Colhe miséria maior e diz à coitada: Tome.
É forma de escravidão a infinita pobreza, mas duas vezes escrava é a mulher com certeza, pois escrava de um escravo pode haver maior dureza?
Por isso aquela mocinha fez tudo para iludir aos outros e ao seu destino. Mas rola não é tapir e chega lá um momento da natureza explodir.
João vira Joana: acontecem dessas coisas sem preceito. No seu colo está Joãozinho mamando leite de peito. Pelo menos esse aqui de ser homem tem direito.
De ser homem: de escolher o seu próprio sofrimento e de escrever com peixeira a lei do seu mandamento quando à falta de outra lei ou eu fujo ou arrebento.
Joana desiste de tudo que ganhara por mentira. Sabe que agora lhe resta apenas do saco a embira. E nem mesmo lhe aproveita esta minha pobre lira.
Saibam quantos deste caso houverem ciência, que a vida não anda, em favor e graça, igualmente repartida, e que dor ensombra a falta de amor, de paz e comida.
Meu leitor (não eleitor, que eu nada te peço a ti senão me ler com paciência de Minas ao Piauí): tendo contado meu conto, adeus, me despeço aqui. Esse cordel musical de autoria de Carlos Drummond de Andrade e Sérgio Ricardo, foi gravado no Estúdio Transamérica - Rio de Janeiro, em fevereiro, março e abril de 1985, com voz e arranjo de Sérgio Ricardo, orquestração de Radamés Gnattali e regência de Alexandre Gnattali.
Foi extraído do livro "Carlos Drummond de Andrade - Poesia Completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 2002, pág. 617.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias". |
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