Assim como a fábula e o enigma, a crônica é um gênero narrativo. Como diz a origem da palavra (Cronos é o deus grego do tempo), narra fatos históricos em ordem cronológica, ou trata de temas da atualidade. Mas não é só isso. Lendo esse texto, você conhecerá as principais características da crônica, técnicas de sua redação e terá exemplos.
Uma das mais famosas crônicas da história da literatura luso-brasileira corresponde à definição de crônica como "narração histórica". É a "Carta de Achamento do Brasil", de Pero Vaz de Caminha", na qual são narrados ao rei português, D. Manuel, o descobrimento do Brasil e como foram os primeiros dias que os marinheiros portugueses passaram aqui. Mas trataremos, sobretudo, da crônica como gênero que comenta assuntos do dia a dia. Para começar, uma crônica sobre a crônica, de Machado de Assis:
O nascimento da crônica
“Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace est rompue está começada a crônica. (...)
(Machado de Assis. "Crônicas Escolhidas". São Paulo: Editora Ática, 1994)
ESFERA: Publicada em jornal ou revista onde é publicada, destina-se à leitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos.
A crônica se diferencia no jornal por não buscar exatidão da informação. Diferente da notícia, que procura relatar os fatos que acontecem, a crônica os analisa, dá-lhes um colorido emocional, mostrando aos olhos do leitor uma situação comum, vista por outro ângulo, singular.
LEITOR PRESSUPOSTO: é urbano e, em princípio, um leitor de jornal ou de revista. A preocupação com esse leitor é que faz com que, dentre os assuntos tratados, o cronista dê maior atenção aos problemas do modo de vida urbano, do mundo contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do dia a dia comuns nas grandes cidades.
Jornalismo e literatura
É assim que podemos dizer que a crônica é uma mistura de jornalismo e literatura. De um recebe a observação atenta da realidade cotidiana e do outro, a construção da linguagem, o jogo verbal. Algumas crônicas são editadas em livro, para garantir sua durabilidade no tempo.
Leia a seguir uma crônica de um dos maiores cronistas brasileiros:
Recado ao Senhor 903
“Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
(Rubem Braga. "Para gostar de ler". São Paulo: Ática, 1991)
Fato corriqueiro...
Há na crônica uma série de eventos aparentemente banais, que ganham outra "dimensão" graças ao olhar subjetivo do autor. O leitor acompanha o acontecimento, como uma testemunha guiada pelo olhar do cronista que tem a pretensão de registrar de maneira pessoal o acontecimento. O autor dá a um fato corriqueiro uma perspectiva, que o transforma em fato singular e único.
No caso da crônica "Recado ao Senhor 903", há uma crítica à desumanização na cidade grande, na qual somos, muitas vezes, apenas números e não pessoas. O surpreendente é a inversão proposta pelo narrador ao final da crônica: no lugar da intolerância, tão comum nas cidades grandes, ele propõe um possível acolhimento amigo.
Outro aspecto é que as personagens das crônicas não têm descrição psicológica profunda, pois, são caracterizadas por uma ou duas características centrais, suficientes para compor traços genéricos, com os quais uma pessoa comum pode se identificar. Em geral, as personagens não têm nomes: é a moça, o menino, a velha, o senador, a mulher, a dona de casa. Ou têm nomes comuns: dona Nena, seu Chiquinho, etc...
1) Intenção e linguagem
O narrador-personagem da crônica (ou remetente da carta ao vizinho) reconhece que faz barulho e por isto pede desculpas. Veja, assim, as palavras e afirmações que usou para construir essa ideia: "consternado", "desolado", "lhe dou inteira razão", "O regulamento do prédio é explícito", "Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso", "Peço desculpas", "Prometo silêncio".
No entanto, através de ironias, o narrador reconhece sua falta, mas explicita que não concorda com a situação, uma vez que a aborda também de outro ângulo, problematizando as relações entre as pessoas e não simplesmente aceitando a situação como algo imutável.
E faz isso, especialmente, quando:
- ironiza a estruturas dos prédios em que as pessoas ficam empilhadas, perdendo o contato humano;
- refere-se a todos os vizinhos, incluindo ele próprio, pelo número do apartamento e não pelo nome;
- critica o isolamento e a distância entre as pessoas cujas vidas estão limitadas pelas normas que cerceiam o convívio humano;
- sonha com outra relação mais humana e fraterna, entre as pessoas.
2) Ironia e humor
a) Veja como o narrador usa uma fina ironia quando fala de si mesmo e dos motivos das reclamações do vizinho:
"Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua." Verifique ainda como o uso do elemento "apenas", usado duas vezes intensifica a sua exclusão em relação aos demais moradores do prédio.
b) O excesso de referência a números acaba por criar um efeito de humor e crítica social:
"Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h 45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h 15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305."
Enfim, o efeito de humor tem a ver com:
- o contraste entre uma situação e outra: os que mantêm silêncio e pessoas, como o narrador, que não o fazem;
- o inesperado: o texto parece se encaminhar para um sentido e bruscamente aponta para outro.
3)Uso de verbo
Quando o narrador quer sonhar com uma outra situação em relação, não só à sua vizinhança, mas também à vida na cidade grande, veja que ele constrói essa ideia usando verbos no pretérito imperfeito do subjuntivo, o que indica possibilidade/desejo/hipótese:
"Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: 'Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou'. E o outrorespondesse: 'Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela'.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
4)Uso dos artigos
Releia os trechos:
a) "Quem fala aqui é o homem do 1003.".
Foi usado o artigo definido ( o ), quando o narrador refere-se a si mesmo, particularizando, dessa forma, um indivíduo, entre outros.
b) "Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse (...). E o outro respondesse (...)"
Há artigo indefinido ("um homem"), quando foi introduzido um elemento ainda não citado no texto, generalizando-o. Há artigo definido ("o outro"), quando novamente se tem um indivíduo já citado, particularizando-o.
Veja que essas escolhas linguísticas vão constituindo a ligação/coesão entre as partes do texto, de tal maneira que, mais do que saber o nome das classes da gramática - substantivos, adjetivos, artigos, advérbios, verbo, conjunção, pronome, preposição, numeral - é importante saber suas articulações na construção dos sentidos de um texto.
Características das crônicas
A crônica é um texto narrativo que:
- É, em geral, curto;
- Trazem as pessoas comuns como personagens, sem nome ou com nomes genéricos. As personagens não têm aprofundamento psicológico; são apresentadas em traços rápidos;
- É organizado em torno de um único núcleo, um único problema;
- Tem como objetivo envolver, emocionar o leitor.
- O discurso: Texto curto e inteligível (de imediata percepção);
- Apresenta marcas de subjetividade – discurso na 1ª e 3ª pessoa;
- Pode comportar diversos modos de expressão, isoladamente ou em simultâneo:
- descrição;
- contemplação / efusão lírica;
- comentários;
- reflexão.
- Linguagem com duplos sentidos / jogos de palavras / conotações;
- Utiliza a ironia;
- Registro de língua corrente ou cuidado; geralmente emprega a variedade informal da língua;
- Pode apresentar discurso direto, indireto e indireto livre, que vai da oralidade ao literário;
- Predominância da função emotiva da linguagem sobre a informativa;
- Vocabulário variado e expressivo de acordo com a intenção do autor;
- Pontuação expressiva;
- Emprego de recursos estilísticos;
- A temática: Trata de problemas do cotidiano; assuntos comuns, do dia a dia;
- Aborda aspectos da vida social e quotidiana;
- Transmite os contrastes do mundo em que vivemos; Apresenta episódios reais ou fictícios;
- O narrador pode ser observador ou se constituir em personagem;
A crônica pode receber diferentes classificações:
- a lírica, em que o autor relata com nostalgia e sentimentalismo;
- a humorística, em que o autor faz graça com o cotidiano;
- a crônica-ensaio, em que o cronista, ironicamente, tece uma crítica ao que acontece nas relações sociais e de poder;
- a filosófica, reflexão a partir de um fato ou evento;
- e jornalística, que apresenta aspectos particulares de notícias ou fatos, pode ser policial, esportiva, política etc.
- a primeira é a narrativa, que como já foi dito, conta um fato do cotidiano, utilizando-se de personagens, enredo, espaço, tempo, etc.
- a segunda é a crônica dos textos jornalísticos, é uma forma mais moderna do gênero, e ao contrário da outra não narra e sim disserta, defende ou mostra um ponto de vista diferente do que a maioria enxerga.
As semelhanças entre as duas são justamente o caráter social crítico, abordando sempre uma maneira de enxergar a realidade, e o tom humorístico, irônico ou até mesmo sarcástico. Podem se utilizar, para esse objetivo, de “personagens tipo”, da sociedade que criticam.
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OBSERVAÇÃO:
Partilha fatos do cotidiano com seu leitor, dando singularidade a eles.
Traz aspectos de oralidade para a escrita: expressões de conversa familiar e íntima, repetições e o pronome “você”.
Emprega verbos flexionados na primeira e terceira pessoas.
Vale-se do discurso direto no diálogo, verbos de dizer.
Usa marcas de tempo e lugar que revelam fatos do cotidiano.
Cobrança – Moacyr Scliar
Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".
― Você não pode fazer isso comigo ― protestou ela.
― Claro que posso ― replicou ele. ― Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tenteilhe cobrar, você não pagou.
― Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
― Já sei ― ironizou ele. ― Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estoufazendo.
― Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
― Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restououtro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.
― Você vai se molhar ― advertiu ela. ― Vai acabar ficando doente.
Ele riu, amargo:
― E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
― Posso lhe dar um guarda-chuva...
― Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
Ela agora estava irritada:
― Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
― Sou seu marido ― retrucou ele ― e você é minha mulher, mas eu soucobrador profissional e você é devedora. Eu avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.
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DA JANELA DO MEU QUARTO
Neste mundo moderno em que as cidades estão cada vez mais urbanizadas, da janela do meu quarto, vejo muros de concreto, janelas e telhados de casas vizinhas e prédios.
Ao amanhecer não se vê mais o sol aparecer, as casas e prédios deixaram minha casa ilhada.
Um galo solitário anuncia a chegada do sol e da janela do meu quarto observo o dia clarear.
Pássaros gorjeiam aqui perto, um cão late.
Começa o dia com o barulho dos carros e motos na avenida; da janela do meu quarto observo o movimento da rua; mães levando crianças para escola e adolescentes também vão para escola.Homens e mulheres saindo para o trabalho.
Eu, da janela do meu quarto,observo tudo e fico relembrando aquele tempo em que ;da janela do meu quarto eu via o sol colorir o céu de alaranjado e despontar radiante;anunciando o começo do dia.Com a brisa suave empurrando a cortina me despertando ,juntamente com o barulho somente dos pássaros.
Atualmente só temos a poluição visual e sonora que “grita”, da janela do meu quarto.
Edmeia 11/05/2009 (Código do texto: T1587530 - http://www.recantodasletras.com.br)
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