Apresentação (Walter E. Garcia)
O autor é diretor da Oficina Internacional de Educação da UNESCO (Genebra), e este livro traz temas recorrentes na literatura pedagógica universal: competitividade, cidadania, crise e reforma dos sistemas educativos, qualidade, novas tecnologias, etc. Os temas da globalização e da abertura econômica só começaram a ter um debate mais intenso, no Brasil, na década de 90. O grande tema sempre foi a dívida social, com seus desdobramentos. (9)
Inúmeros fatores tornaram irrelevante a postura histórica da formação dos sistemas tradicionais de educação, de que a qualificação das pessoas era feita para atender demandas. A reorganização dos sistemas de produção coloca em relevo novas atribuições, e exigem novas posturas dos atores educacionais: o aparecimento de novas necessidades educativas que se agreguem às funções tradicionais da escola. (10)
Esperamos que estas mudanças não se transformem em cortina de fumaça para abandonar velhos dogmas da educação pública, gratuita, universal e obrigatória. A substituição desse paradigma por duvidosas políticas compensatórias pode representar um retrocesso inominável e uma traição para com o futuro do país. (10)
Introdução
A queda do muro de Berlim simboliza a crise dos parâmetros tradicionais de definição das identidades políticas e ideológicas. Os movimentos educacionais não estão alheios a essa crise, e as certezas do passado desapareceram. A realidade contém paradoxos que são incompreensíveis nos termos das categorias tradicionais. (11)
Ninguém sabe mais onde está situado. As respostas simples do passado não são mais suficientes para definir uma orientação político-educacional que responda aos objetivos de democracia e equidade na distribuição do conhecimento. (12)
Este livro busca refletir sobre o papel da educação neste novo cenário social, e tenta definir uma alternativa, tanto às tendências neoliberais como às tendências antimodernas fundamentalistas. (12)
O olhar para o passado não tem nenhuma pretensão de análise histórica. Tenta ser um instrumento para entender aquilo que está mudando. O olhar para o futuro tampouco pretende anunciar o que virá, mas chamar atenção sobre para onde deveríamos orientar nossas ações. (12)
Capítulo l - Vivemos uma revolução
Crise e Educação são termos frequentemente associados. Por consequência, o sistema educacional tem sido uma das áreas das políticas públicas mais recorrente e sistematicamente "reformadas". (15)
A crise da educação não é mais a mesma.
A crise da educação já não se apresenta como um fenômeno de insatisfação no cumprimento de demandas relativamente estabelecidas, mas como uma expressão particular da crise do conjunto das instâncias da estrutura social: desde o mercado de trabalho e o sistema administrativo até o sistema político, a família e o sistema de valores e crenças. (15)
A crise já não provém da forma deficiente de a educação cumprir os objetivos sociais que lhe são atribuídos, mas do fato de não sabermos que finalidades ela deve cumprir e para onde deve efetivamente orientar suas
ações. Agora a crise implica em modificar orientações e comportamentos. (15)
Estamos vivendo um processo de profunda transformação social. Não estamos diante de mais uma crise conjuntural do modelo capitalista, mas diante do surgimento de novas formas de organização social, econômica e política (sociedade da informação, sociedade pós-capitalista, sociedade pós-industrial, terceira onda, etc.) (16)
Antes, os críticos encontravam-se entre os próprios educadores, pesquisadores e acadêmicos. Agora se encontram, especialmente, entre atores externos ao processo pedagógico e às instituições educacionais. Os portadores do discurso 'revolucionário' são agora pessoas vinculadas às tecnologias de ponta, aos setores mais modernos da economia. (16)
Em que consiste esta nova revolução
Há algumas características centrais que prefiguram a sociedade do futuro, e escolhemos três áreas para descrever os processos de transformação: o modo de produção, as tecnologias da comunicação e a democracia política. (17)
A competição exacerbada pela conquista de mercados está modificando os padrões de produção e organização do trabalho: estamos passando de um sistema de produção dirigido ao consumo de massas para um sistema de produção dirigido a um consumo diversificado - as novas tecnologias baseadas na informática permitem a produção de pequenas quantidades de artigos cada vez mais adaptados aos diferentes clientes. (17)
A flexibilidade na produção se expressa: nas noções de polivalência, nas equipes multitarefa, nas plantas multiprodutos, em que se valoriza a capacidade da pessoa para trabalhar em equipe e adaptar-se a condições e exigências de mudança. (18)
Além da flexibilidade, a produção moderna requer uma distribuição diferente da inteligência. O taylorismo e o fordismoda produção em massa requeriam uma organização do trabalho hierarquizada de forma piramidal, na qual a criatividade e a inteligência concentravam-se na cúpula, enquanto o restante das pessoas devia executar mecanicamente as instruções recebidas. (18)
As novas formas de produção necessitam de uma organização mais plana e aberta, com amplos poderes de decisão nas unidades locais e com a inteligência distribuída de forma mais homogênea. O conceito de 'qualidade total' expressa essa necessidade. (18)
A inovação e a melhora contínua tornaram-se uma necessidade. Os ciclos de vida dos produtos encurtam-se cada vez mais, obrigando a uma renovação constante dos projetos, o que estimula a capacitação permanente e a criatividade, assim como o trabalho em equipe e a associação com outros setores. Por outro lado, a renovação constante gera uma forte instabilidade interna. (18)
As novas condições de produção, baseadas no uso intensivo de conhecimentos, têm um potencial de exclusão muito significativo - só pode assegurar condições de plena realização a uma minoria de trabalhadores. (19)
As novas tecnologias da informação têm um impacto não só na produção de bens e serviços, mas também no conjunto das relações sociais. A acumulação de informação, a velocidade na transmissão, a superação das limitações espaciais, a utilização simultânea de múltiplos meios (imagem, som, texto) são, entre outros, elementos que explicam o enorme potencial de mudança que essas novas tecnologias apresentam. (19)
As mudanças nas tecnologias da comunicação alteram a estrutura de interesses (as coisas nas quais pensamos), mudam o caráter dos símbolos (as coisas com as quais pensamos) e modificam a natureza da comunidade (a área na qual se desenvolvem os pensamentos). A invenção da imprensa e seus impactos são muito parecidos, não só a atitude dos autores mudou, como também a dos leitores: antes, a leitura dos livros era um ato coletivo. Embora se tenha ampliado o acesso ao conhecimento, também se criou uma exigência do domínio do código de leitura. (19)
Por fim, as mudanças provocadas no processo produtivo e nas relações sociais pelo uso das tecnologias da informação têm impacto direto sobre a vida política. Qual será a fórmula política por meio da qual se expressará esta nova realidade? (20)
A educação diante da nova realidade social
O que há de novo é o papel que desempenham o conhecimento e a informação tanto na própria produção como no consumo.É consenso que o conhecimento constitui a variável mais importante na explicação das novas formas de organização social e econômica. (20)
A educação, entendida como a atividade por meio da qual se produz e se distribui o conhecimento, assume, portanto, uma importância inédita em, pelo menos, dois sentidos:
• Do ponto de vista político-social os 'detentores do conhecimento' desempenham um papel muito importante, tanto na geração de conflitos como em sua solução. As disputas pelos lugares onde se produz e se distribui o conhecimento constituem o centro dos conflitos sociais do futuro - o respeito e a proteção aos direitos de propriedade intelectual, a negociação sobre o controle da circulação de produtos culturais, como os filmes e os vídeos. Os conflitos sociais e políticos também começam a ter uma maior densidade de informação, de conhecimentos e de utilização dos instrumentos tecnológicos: a manifestação através da Internet permite a participação, independentemente do lugar físico e da posição de cada um na hierarquia das organizações; (20/21)
• Do ponto de vista dos conteúdos da educação, o desenvolvimento das tecnologias da informação cria a necessidade de evitar que se produza a separação definitiva entre conhecimento e pensamento. As tecnologias possuem uma enorme capacidade de acúmulo e processamento de informação. Esse processo, levado a seu extremo, suporia que fôssemos incapazes de entender, de pensar e de falar aquilo que, no entanto, podemos fazer. (21/22)
Nesse contexto, a reflexão sobre o papel da educação na sociedade e em seu desenvolvimento implica definir os conhecimentos e as capacidades que a formação do cidadão exige e a forma institucional pela qual esse processo de formação deve ocorrer. As instituições escolares não criam o conteúdo do processo de socialização. Ao contrário, é o conteúdo da socialização que define o desenho das instituições escolares. (22)
Mas é preciso perguntar, primeiro, se a escola será a instituição socializadora do futuro e se a formação das gerações futuras exigirá esse mesmo desenho institucional. A sociedade do futuro deverá ser dotada de instituições capazes de manejar a incerteza. A experimentação começará a ser admitida na reflexão teórica e na prática política. (23)
A reflexão filosófica volta a ter importância
Trata-se de colocar as análises técnicas e operacionais no quadro global de uma concepção que dê sentido a nossas ações, e a discussão dos fins da educação em suas expressões técnicas, senão seriam não só estéreis do ponto de vista da ação, mas também pouco férteis teoricamente. (23)
Capítulo 2 - A crise do sistema tradicional
Nas sociedades ocidentais, o sistema educacional respondeu, originalmente (final do séc. XIX), às exigências políticas do processo de construção da democracia e dos Estados nacionais e às exigências econômicas de construção do mercado. (24)
Expandiu-se, com a estratégia de criar um sistema educacional articulado em níveis (primário, secundário e superior), correspondentes às idades e ao lugar que cada classe ocuparia na hierarquia social. Sequencialidade e hierarquizaçãoforam as duas categorias associadas, em torno das quais organizou-se a atividade educativa escolar. A ascensão implicava o acesso a estágios cada vez mais complexos de compreensão da realidade e a posições sociais de maior prestígio e poder. (25/26)
A crise do sistema tradicional manifesta-se na impossibilidade de manter a vigência dessas categorias. Asequencialidade de acesso ao conhecimento é questionada pela necessidade da aprendizagem e da formação permanente, e pela difusão da informação geral sem discriminação de idades que os meios de comunicação de massa realizam. A hierarquização é questionada pelo acesso universal à educação, pela ruptura dos vínculos de autoridade e pela dissociação entre ascensão educacional e ascensão social. (26)
A formação do cidadão: nação e democracia
A história da educação ocidental está relacionada à história da construção da nação, da democracia e do mercado. A partir do surgimento do Estado-nação, a legitimidade política passou a basear-se na soberania popular. A educação, entendida como processo de socialização, teve enorme importância na consolidação da nação; foi o instrumento por meio do qual se deu a integração política. A formação da cidadania implicou a adesão à nação acima de qualquer outro vínculo - religioso, cultural ou étnico. (26)
A nação e a democracia são construções sociais e, portanto, devem ser ensinadas e aprendidas. O que houve de peculiar na formação do cidadão foi a adesão a determinadas entidades socialmente encarregadas de difundir as normas de coesão social e de aceitação das regras de disciplina social. (26/27)
A coesão social expressa-se pela aceitação de uma concepção comum do mundo e da sociedade e pela incorporação a um sistema que teoricamente seja capaz de abranger todos [todos o quê?]. A coesão promovida pelo processo de socialização escolar teve um forte caráter hierárquico, numa escala de níveis crescentes de complexidade, autoridade e hierarquia das posições sociais. A atividade educacional foi percebida e conceitualizada em termos da ordem social dominante. (27)
A socialização escolar promovia o respeito à autoridade, o valor da disciplina, a aceitação de papéis e visões do mundo predefinidos, que dominavam a formação da família. A escola pública representava os valores e os saberes universais, aspectos que se colocavam acima das normas culturais particulares dos diversos grupos que compõem a sociedade; foi projetada como uma instituição que assume a representação da vontade e dos interesses gerais, cuja responsabilidade era do Estado. (28/29)
O projeto educacional caracterizou-se por uma articulação entre seu componente quantitativo (acesso universal e obrigatório) e qualitativo (laicismo, lealdade à nação, língua oficial, etc.). A confiança na educação das pessoas foi um elemento fundamental do êxito na construção do Estado-nação. Estava baseada na projeção da possibilidade de um futuro sempre melhor, de uma ampliação progressiva dos espaços de participação, liberdade e justiça. (29)
O "déficit de socialização" da sociedade contemporânea
As duas ideias básicas que definiram a formação do cidadão - democracia e nação - acham-se em processo de revisão. O desaparecimento do antagonismo entre Capitalismo e Socialismo provocou a obsolescência do sistema de representação. A ideia de cidadania associada à nação começa a perder significado. Em seu lugar aparece uma adesão a entidades supranacionais e uma retomada do comunitarismo local, no qual a integração define-se fundamentalmente como integração cultural, e não política. (29/30)
Vivemos um período no qual as instituições educativas tradicionais, particularmente a escola e a família, estão perdendo capacidade para transmitir com eficácia valores e normas culturais de coesão social, o que caracteriza o "déficit de socialização". (30)
Os novos agentes de socialização, os meios de comunicação de massa, não foram projetados como entidades encarregadas da formação moral e cultural das pessoas. Ao contrário, seu projeto supõe que essa formação já esteja adquirida e, por isso, a tendência dos meios é atribuir aos próprios cidadãos a responsabilidade pela escolha das mensagens que querem receber. (30/31)
Família e socialização
A socialização primária, que normalmente se dá no seio da família, é a fase que o indivíduo atravessa na infância e mediante a qual se transforma em membro da sociedade; é a mais importante para o indivíduo, com ela ele adquire a linguagem, os esquemas básicos de interpretação da realidade e os rudimentos do aparato legitimador. (31)
As duas características mais importantes da socialização primária são a carga afetiva e a identificação absoluta com o mundo tal como os adultos o apresentam. Nesse sentido, é importante perceber que a socialização primária implica mais do que uma aprendizagem puramente cognitiva. Ela se realiza em circunstâncias de enorme carga emocional. (31)
A socialização secundária é todo o processo posterior, que incorpora o indivíduo já socializado a novos setores do mundo objetivo de sua sociedade. (31)
Na sociedade atual, os conteúdos da socialização primária são transmitidos com uma carga afetiva diferente da do passado. Os grupos e as opções às quais uma criança é exposta tendem a diferenciar-se, a multiplicar-se e a modificar-se com uma velocidade sem precedentes. (31/32)
A evolução do individualismo
O credo do século XX é que cada pessoa é única, cada pessoa é ou deveria ser livre, cada um de nós tem ou deveria ter o direito de criar ou construir uma forma de vida para si, e de fazê-lo por meio de uma escolha livre, aberta e sem restrições. Essa ampliação das possibilidades de escolha tem consequências: (32/33)
• na composição e no funcionamento da família: a incorporação da mulher no mercado de trabalho, a tendência a reduzir o número de filhos, o aumento das separações e do número de filhos que vivem sozinhos ou com um dos pais. Além disso, o direito de cada um a definir sua própria vida supõe que os pais adotem uma conduta menos 'autoritária', menos impositiva; (33/34)
• produz-se uma diminuição do tempo real que os adultos significativos passam com seus filhos; esse tempo é agora ocupado por outras instituições - escolas, creches, etc., ou pela exposição a meios de comunicação (quando a criança está só diante das mensagens que recebe). Os adultos significativos para a formação das
novas gerações tendem a diferenciar-se. O ingresso nas instituições é cada vez mais precoce; (34)
• os adultos perderam a segurança e a capacidade de definir o que querem oferecer como modelo às novas gerações. (34)
Num sentido mais geral e profundo, a socialização primária começa a ser transmitida com uma carga afetiva diferente da do passado. (34)
A televisão: o desaparecimento da infância
A ausência de escolha supõe a ausência de informação sobre as opções possíveis. Ampliar o acesso à informação implica aumentar a possibilidade de escolha, revelar o segredo que existia, a perda do tabu, a incorporação da incerteza. (34)
A televisão, particularmente, está revelando segredos da sexualidade, da violência e da capacidade dos adultos para dirigir o mundo. A televisão faz a criança ver o mundo tal como ele é. Na socialização tradicional, essa realidade era negada; para obter informações era necessário dominar os códigos de acesso da leitura e da escrita, e estar presente nos cenários onde essa realidade se produzia. (35/36)
A televisão suprimiu a barreira que a leitura impunha ao acesso à informação. A programação, por ser geral - dirigir-se a um público indiferenciado - evidencia todos os segredos da vida sem respeitar idades nem sensibilidades; não discrimina momentos nem sequências na difusão da informação. (36)
Ver televisão não requer nem desenvolve habilidade especial; estabelece as condições de comunicação que existiam antes da imprensa, e desfaz as linhas de separação entre crianças e adultos; suprime as exigências para o acesso à informação. (36)
À medida que a informação adulta chega às crianças, a curiosidade delas se enfraquece, assim como a autoridade dos adultos. (36)
A socialização familiar tradicional baseava-se na existência da infância como categoria especial, diferente. A distinção entre infância e vida adulta apoiava-se na existência de âmbitos desconhecidos, de segredos e da ideia de 'vergonha'. (36)
Os segredos (vida sexual, dinheiro, violência, morte, doenças) eram mantidos e iam sendo revelados de forma progressiva, à medida que a criança estava em condições de ter acesso a esse conhecimento. A identidade infantil definia-se pela ignorância desses segredos, a dos adultos pelo conhecimento e capacidade de controle sobre eles. (36)
Essas mudanças afetam as relações entre a família e a escola. As crianças chegam à escola com um núcleo básico de desenvolvimento da personalidade caracterizado pela debilidade dos quadros de referência, ou com quadros de referência que diferem dos que a escola supõe e para os quais se preparou. (37)
A escola era uma continuação da família. Mas na família estabeleceu-se a diferenciação, o respeito à diversidade, a ampliação dos espaços de escolha e a personalização. Na escola, manteve-se a indiferenciação, a resistência à diversidade. As opções clássicas transformaram-se em puro formalismo, baseado em funcionamentos burocráticos, que debilitam a autoridade e a legitimidade da mensagem da escola. (37)
Escola e socialização: o desaparecimento do professor
As causas da perda da capacidade socializadora da escola vão desde a massificação da educação, a perda de prestígio dos docentes e a rigidez dos sistemas educacionais, até o dinamismo e a rapidez da criação de conhecimentos e o aparecimento dos meios de comunicação de massa. (37)
A maior evidência é a deterioração do professor como agente de socialização. Produziu-se um processo de desaparecimento das distinções entre professor e aluno, acompanhado por um processo de perda de significação social das experiências de aprendizagem que se realizam na escola. (38)
A crise da autoridade adquire sua expressão máxima quando chega às áreas pré-políticas de exercício da autoridade, como são as relações entre professores e alunos e entre pais e filhos. (38)
Os docentes, em consequência, tenderam a alhear-se do que lhes era próprio e específico. A ampliação dos saberes nos processos de formação docente esteve vinculada a regras de hierarquia, de critério e de seleção: avaliação, currículo, orientação, sociologia e política da educação, pesquisa, etc. A ampliação desses saberes teve um forte efeito desestabilizador, na medida em que gerou um alheamento da prática da aula. (39/40)
A ausência de sentido
A socialização atual enfrenta a perda de ideais, a ausência de utopia, a falta de sentido. A perda de finalidades faz desaparecer a promessa social ou política de um 'futuro melhor'. O fim da utopia provocou a sacralização da urgência, erigida em categoria central da política. A perda de sentido deixa os educadores sem pontos de referência. (41/42)
Capítulo 3 - Qualidade para todos
A crise se localiza mais no vínculo entre qualidade e quantidade do que na qualidade da educação em si mesma. No modelo tradicional, esse vínculo era direto e linear: níveis mais altos de complexidade qualitativa estavam associados a menor quantidade de indivíduos capazes de ter acesso a eles. (45)
A expansão da matrícula escolar em todos os níveis rompeu o equilíbrio tradicional, provocando um "excesso de certificação" educacional em relação à hierarquia social, o que explica a desvalorização geral dos diplomas e a crescente falta de correspondência entre nível educacional e postos de trabalho. (45)
A definição do que se ensina e de quem tem acesso a essa aprendizagem tornou-se fator central da definição sobre a distribuição do poder e da riqueza. (46)
Competitividade e cidadania
O que mais chama atenção nos debates acerca do futuro é a importância que os não-educadores (empresários dos setores tecnologicamente mais avançados da economia, profissionais da comunicação) conferem à educação, ao papel do conhecimento, da informação e da inteligência no processo produtivo. (46)
O conhecimento tem virtudes democráticas intrínsecas como fonte de poder; diferentemente das fontes tradicionais de poder (força, dinheiro, terra), o conhecimento é sempre ampliável. Um mesmo conhecimento pode ser utilizado por diferentes pessoas, e sua utilização pode produzir mais conhecimento. (46/47)
As empresas se classificarão em categorias vinculadas à intensidade de conhecimento que utilizem. A estrutura ocupacional será baseada em três categorias: (47)
• serviços rotineiros, que implicam a execução de tarefas repetitivas;
• serviços pessoais, que supõem a realização de tarefas rotineiras e repetitivas oferecidas cara a cara (servente, babá, taxista, mecânico, etc.);
• serviços simbólicos, que se referem à identificação e solução de problemas, e definição de estratégias. Dependem daabstração, do pensamento sistêmico, da experimentação e da capacidade de trabalhar em equipe. (48)
O conceito de 'inteligente' inclui capacidades não-cognitivas: afetos, emoções, imaginação e criatividade. (48)
Redefinição da relação educação-mercado de trabalho
As capacidades requeridas para o exercício da cidadania e para a atividade produtiva abrem novas perspectivas ao papel da educação. (51)
Segmentação e exclusão são os dois fenômenos que acompanham a expansão da economia baseada no conhecimento. A incapacidade do novo modo de produção para incorporar a população, de maneira estável, tem como consequência o desemprego, a pobreza, a violência, a intolerância. (52/53)
A flexibilidade leva à subcontratação de partes do processo produtivo e à polivalência de seu pessoal, que deve adaptar-se a condições de trabalho em mudança. Esta exigência de polivalência e de adaptação permanente, unida às exigências de trabalho em equipe e de criatividade, gera um clima desestabilizador muito forte, tanto no plano individual como no institucional. (53)
Uma das formas de resolver esta instabilidade é dotar as pessoas que ocupam esses postos de trabalho de condições de seguridade muito altas, como contrapartida a uma entrega total às exigências da empresa. Cada vez é mais importante a formação no próprio processo de trabalho. Essa tendência pode derivar num cenário que se assemelharia à situação corporativa medieval: o setor 'dominante' seria o grupo de trabalhadores que possui os conhecimentos; os excluídos seriam quase 'inúteis'. (54/55)
Do ponto de vista político, esses níveis tão altos de exclusão só poderiam manter-se com níveis igualmente altos de autoritarismo. As alternativas a esse cenário baseiam-se na definição de estratégias para manter a coesão social. O postulado central é evitar que o trabalho seja monopolizado por uma elite da sociedade. Esse cenário prenuncia o eixo de debates sobre as orientações educativas do futuro. (56)
O conflito e a tensão transferem-se de novo para o âmbito quantitativo: definir quantos e quais terão acesso a essa formação. É por isso que a demanda de qualidade para todos, baseada no pressuposto de que todos os seres humanos são capazes de aprender, constitui a alternativa mais legítima. (57)
Capítulo 4 - As novas tecnologias
As mudanças no modo de produção estão ligadas à utilização das tecnologias da comunicação e informação. Alguns tendem a crer que são as tecnologias que provocam as mudanças nas relações sociais, quando, na verdade, a evolução das tecnologias responde às exigências das relações sociais. (59)
As tecnologias da comunicação e da informação respondem tanto às exigências do individualismo como às exigências de integração social. A discussão sobre as relações entre educação e tecnologias abrange os processos de socialização e de aprendizagem. (59/60)
Do ponto de vista da socialização, as tecnologias não devem ser percebidas como uma ameaça à democracia e à formação das novas gerações. Do ponto de vista do processo de aprendizagem não devem ser percebidas, utopicamente, como a solução para todos os problemas de qualidade e cobertura da educação. (60)
Televisão e aprendizagem
Os meios de comunicação são acusados de ser um dos elementos responsáveis pelos desvios morais da infância e da juventude. Mais tempo na frente da televisão acarreta diminuição no interesse pela leitura, maiores possibilidades de obesidade e passividade psíquica, índices mais altos de violência, agressividade e medo da violência real. Atribui-se esse problema à lógica puramente comercial da programação. (60/61)
É preciso reconhecer que os fenômenos mais graves de violência, xenofobia e intolerância cultural que ocorrem, não estão ligados a uma exposição muito significativa da população à televisão. (61)
A televisão mudou a natureza da opinião pública, que deixou de basear-se na avaliação intelectual das proposições para converter-se numa resposta intuitiva e emocional à apresentação de imagens. A imagem mobiliza particularmente as emoções, os sentimentos, a afetividade, enquanto a leitura estimula a racionalidade e a reflexão. A publicidade supõe introduzir um comportamento não-racional na economia. (62)
A multiplicação dos canais de televisão e a ampliação dos circuitos de distribuição de conhecimentos, valores e padrões culturais pela imagem afetam profundamente os conteúdos do processo de socialização. Na sociedade contemporânea, na qual os vínculos primários se enfraquecem e a família já não transmite seus conteúdos com a força afetiva com que fazia no passado, a socialização secundária começa a encarregar-se da afetividade. (63/64)
A socialização através da imagem e não da língua escrita assume essa função e o faz não tanto através dos conteúdos, mas da forma que utiliza. Desse ponto de vista, a televisão tende a reproduzir os mecanismos de socialização primária empregados na família e pela Igreja: socializa através de gestos, de climas afetivos, de tonalidades de voz, e promove crenças, emoções e adesões totais. (64)
Na tradição intelectual do Ocidente a imagem foi sempre subvalorizada em relação ao texto escrito. Uma socialização apoiada maciçamente na imagem implica que devemos aprender, e, portanto, ensinar, a defender-nos da manipulação induzida pela imagem. (64)
Agora é necessário que se ensine a usar os meios para evitar que a imagem nos manipule, o que abre a porta para toda uma linha de ação educativa futura baseada em formar para o uso crítico dos meios. Mas o que significa isso? Muitos educadores sustentam a hipótese de que é necessário introduzir a comunicação como conteúdo de ensino, e, em consequência, enfatizam a necessidade de ensinar como se produz um jornal ou um programa de rádio ou de televisão. Conhecer os mecanismos de produção implicaria adquirir os elementos para defender-se da manipulação. (64)
Essa posição nos desvia do centro do problema, que passa pelos quadros de referência, tanto culturais como cognitivos, com os quais cada pessoa processa as mensagens que recebe. (64)
O espectador realiza uma série de operações de identificação, reconhecimento, diferenciação, que supõe a existência de um núcleo cultural a partir do qual são selecionados e processados os conteúdos dessas mensagens. Quando esse núcleo não está construído ou o está muito debilmente, os riscos de alienação e dependência aumentam. (65)
Os meios tomam como pressuposto que cada indivíduo já desenvolveu o seu quadro de referência, e a tendência é incrementar a diversidade da oferta para permitir que cada um escolha o programa que preferir.
Os meios supõem que os espectadores já têm as categorias e as capacidades de observação, classificação, comparação, etc. necessárias para processar e interpretar dados que eles põem à nossa disposição. (65)
A evolução dos meios de comunicação tende a reproduzir a evolução das outras formas de democratização cultural. O interesse em dispor de uma televisão de caráter geral, pública e de boa qualidade, é um dos temas de qualquer política educativa do futuro. Necessitamos de uma estratégia destinada a reforçar as ações comunicativas através da leitura e da escrita. (65/66)
Informática e educação
O computador e o telefone, diferentemente da televisão, não se baseiam na imagem nem no domínio da afetividade. No computador a inteligência está distribuída de maneira inversa à da televisão: na televisão a inteligência está localizada no centro e os terminais são passivos; no computador, a inteligência está nos terminais e o centro é passivo. O telefone destina-se a assegurar a circulação da informação, sem implicar nenhuma concentração de inteligência nem no centro nem nos terminais. (67)
No essencial, não há dúvida de que a utilização dessas tecnologias pode tornar-se um instrumento importante no processo de aprendizagem. A imagem, o texto e o som tendem cada vez mais a ser associados - aparatos multimídias. (68)
A educação deve formar as capacidades que conformam um comportamento inteligente, e, em relação ao acesso às tecnologias, coloca-se o problema do custo: uma educação de boa qualidade não poderá mais ser de baixo custo. (68)
As tecnologias são 'máquinas relacionais' que permitem pôr em contato uma quantidade cada vez maior de pessoas, mas também servem para proteger-nos dos outros e da realidade do exterior. Esse problema implica identificar as demandas sociais capazes de estimular o desenvolvimento de tecnologias voltadas para o reforço dos vínculos sociais, e não para sua ruptura. (69)
As tecnologias supõem a liberação do tempo ocupado em tarefas rotineiras e contribuem significativamente para aumentar nosso acesso à informação. Mas a informação por si só não acarreta conhecimento, e a mera existência de comunicação não implica a existência de uma comunidade. A construção do conhecimento e da comunidade é tarefa das pessoas. (69)
É aqui que se situa, precisamente, o papel das novas tecnologias em educação: seu uso deve liberar o tempo que agora é utilizado para transmitir ou comunicar informação, e permitir que ele seja dedicado à construção de conhecimentos e vínculos, sociais e pessoais, mais profundos. (70)
Capítulo 5 - A construção da identidade
A especificidade da atual situação educacional é que se perdeu a articulação entre a socialização primária e a socialização secundária. Não se trata, em consequência, de definir técnicas de aprendizagem ou projetos curriculares. As definições da atividade educativa não podem ser elaboradas à margem do processo de socialização, sem uma ideia clara de articulação com as demais ações e instituições socializadoras. No contexto de instabilidade e incerteza, ocorrem fenômenos sejam de regressão aos pontos de referência tradicionais, sejam de adesão a novos valores. (71)
Assim, o que há de peculiar no atual período histórico é a importância que assume a atividade do sujeito na construção de sua identidade. As identidades não são mais impostas totalmente do exterior, mas é preciso construí-las de forma individual. Esse enfoque permite que se explique a pluralidade das identidades. (72)
A existência de sistemas de sentido (culturas) é cada vez menos separável das inúmeras ações individuais que as questionam. O indivíduo incorporava 'sistemas' que existiam de forma independente, agora é a pessoa que deve reconstruir o sistema. (72)
Se, por uma lado, a maior participação das pessoas na construção de suas identidades supõe a libertação dos limites impostos por crenças, preconceitos, visões pré-formadas da vida, por outro, priva os indivíduos da proteção que a posse de uma identidade fixa outorgava, na qual a responsabilidade pelo desenvolvimento das condutas era determinada de fora. (72/73)
Essa ambiguidade constitui uma das fontes da atual reflexão filosófica e educacional: 'minha sorte não depende senão de mim mesmo'. (73)
Essas mudanças no processo de construção da identidade afetam o papel e as modalidades da atividade educativa, em particular a educação formal, que foi organizada sobre dois pressupostos: que o núcleo básico da socialização já está dado pela família; que há um modelo cultural dominante, hegemônico, que a escola deve transmitir. (73)
Quando a família socializava, a escola podia ocupar-se de ensinar. Agora, a escola começa a ser objeto de novas demandas para as quais não está preparada. Diante dessas mudanças na base do processo de socialização, a socialização secundária não permanece inalterada. Há uma espécie de secundarização da socialização primária e de primarização da socialização secundária. (73/74)
A secundarização da socialização primária expressa-se pelo ingresso cada vez mais precoce em instituições escolares, pelo menor tempo passado com os adultos mais significativos (pais e mães) e pelo contato com os meios de comunicação. A primarização da socialização secundária se caracteriza pela incorporação de maior carga afetiva. (74)
A crise das grandes estruturas e a tendência a operar com unidades pequenas, autônomas e flexíveis, supõem o desaparecimento dos mecanismos impessoais das grandes burocracias, substituídos pelos contatos cara-a-cara, em que a integração, o trabalho em equipe, a solidariedade constituem elementos-chave. (75)
Isso implica, na atividade profissional, a tendência a incluir cada vez mais todas as dimensões da personalidade e não só a competência técnica, e, na necessidade de regular pela lei, aspectos que tradicionalmente eram auto-regulados por mecanismos culturais. O intenso personalismo é acompanhado por uma expansão da lei como instrumento de controle social, uma espécie de sucedâneo da autoridade tradicional. (76)
Numa socialização mais flexível e aberta, a formação ética, dos valores e comportamentos básicos, passa a depender de instituições e agentes secundários. Supõe articulações entre o básico e o mutável. (77)
A articulação entre o estável e o dinâmico
No plano da ética, a construção da identidade supõe a articulação entre um núcleo básico, obrigatório, estável e um conjunto mutável de valores e regras de conduta. No plano social, a identidade também se define pela articulação entre o desenvolvimento da individualidade e o desenvolvimento da sociabilidade, entre o obrigatório e o eletivo, entre a continuidade e a transformação. (77)
A crise da modernidade parece haver reduzido ao mínimo o âmbito do estável. A fragilidade dos quadros de referência está associado à insegurança econômica, à perda de confiança, e pode provocar o reforço irracional da demanda de limites e padrões fixos. (77)
A primeira manifestação desse retrocesso consiste em pessoas pensarem sistematicamente como vítimas, e não como responsáveis por seu próprio destino. Expandiu-se de forma significativa o traço cultural de buscar sempre um responsável pelo que não anda bem em nossa vida. (78)
A segunda manifestação consiste em pensar e atuar não como indivíduo, mas como membro de um grupo - mulher pensa como mulher e só pode ser representada por mulher. O corolário desse esquema de pensamento é a fobia à mescla. (78)
Assim, tendemos a pensar que, se o objetivo é conseguir o desenvolvimento da tolerância, será necessário ser tolerante em todas as situações. Ao contrário, a obtenção de certos resultados requer, em determinadas etapas do desenvolvimento, que se passe pela experiência oposta. (78)
Nesse sentido, uma das críticas mais sérias às práticas educativas é que a educação tentou superar o problema da violência eliminando-a como tema das atividades. Nossa cultura tem essa especificidade: estimula o espírito competitivo, favorece os sentimentos agressivos que excitam a rivalidade, mas transforma em tabu a própria agressividade. Estamos habituados a condenar os atos de violência, porém o que nos faz falta é a promoção de modos satisfatórios de comportamento em relação à violência. (78/79)
A ausência total de quadros de referência gera atitudes de criatividade, de tolerância, mas também gera atitudes de anomia, de dissociação e desvinculação social, e a busca de proteção na recriação de vínculos tradicionais. Reside aqui o primeiro desafio para a pedagogia: definir quais são os componentes do núcleo básico da personalidade e da inteligência e as modalidades de sua formação. (79)
A articulação entre o próprio e o alheio: identificação da fronteira
A construção da identidade implica a identificação de uma fronteira. O ideal de tolerância e compreensão supõe não o desaparecimento das fronteiras, mas o desaparecimento da concepção do 'diferente' como um inimigo. O debate acerca de um conceito de cidadania alicerçado numa comunidade de nações (ex.: União Européia) permitiu que se percebesse a importância da 'ruptura cognitiva' que a superação do conceito de cidadania baseado no Estado-nação implica. (79/80)
Parece oportuno evitar que se caia na demonização do nacionalismo. A integração numa unidade maior só será possível a partir da uma sólida e segura identidade cultural própria. A confiança em si mesmo constitui o fundamento inicial de qualquer estratégia de integração e compreensão do 'outro'. (81)
Formação para o exercício responsável da cidadania e redefinição do vínculo entre cidadania e nação são dois aspectos fundamentais da atividade educativa. (81)
Individualismo e interesses gerais
A crise das identidades e da representação políticas trouxe consigo a crise do Estado e de todas as formas de expressão dos 'interesses gerais'. No capitalismo tradicional, os interesses particulares de cada setor social eram apresentados como interesses gerais, e o êxito definia precisamente o caráter hegemônico de uma determinada classe social. (81)
A tensão entre interesses individuais e gerais assume novos significados e manifestações. A tendência de dar maior poder de decisão aos cidadãos responde ao processo de democratização da sociedade, mas esse maior poder implica a existência de um alto nível de responsabilidade individual. O tema da responsabilidade constitui um tema central nas reflexões sobre o futuro. (82)
A formação ética torna-se, então, um requisito central da formação cidadã. A responsabilidade das empresas pelo problema do emprego e do meio ambiente, a responsabilidade dos meios de comunicação pela formação das pessoas, a responsabilidade dos educadores pela aprendizagem dos alunos, a responsabilidade dos alunos pelo seu próprio processo de aprendizagem. Formar com responsabilidade implica aprender e aceitar que temos uma história comum, valores comuns, um destino comum. Reconhecer o outro como sujeito. (82)
Identidade e capacidade de escolher
A escolha é uma conduta que ocorre cada vez mais cedo no processo de formação da personalidade. Os jovens são convocados a escolher, a tomar decisões que há pouco eram definidas por autoridades externas: o Estado, a família, a Igreja. (83)
O desenvolvimento da capacidade de escolher constitui, por isso, uma tarefa importante da educação, o que supõe uma pedagogia diferente: o trabalho em equipe, a solidariedade ativa entre os membros do grupo e o desenvolvimento da capacidade de escutar constituem os elementos centrais dessa pedagogia, que devemos desenvolver do ponto de vista teórico e prático. (84)
O conflito e a construção da identidade
Estas questões remetem ao papel do conflito, da oposição e da dificuldade na construção da identidade. A escola trabalhava sobre o universal, sobre o comum e, assim, apresentava-se como neutra diante de importantes fatores de diferenciação cultural. Os fatores de diferenciação cultural pertenciam ou à família, ou à condição de estrangeiro. (84)
Os padrões entendidos como universais definiam-se por sua neutralidade em relação aos particularismos. O desafio de romper os particularismos conferia à neutralidade relativa da escola um caráter ativo. (84/85)
A crise do Estado-nação, as dificuldades cada vez mais sérias para garantir mobilidade social e as mudanças culturais associadas ao processo de modernização esgotaram a vigência desse esquema de neutralidade. (85)
Capítulo 6 - A escola total
Quatro ambiguidades se apresentam no campo da educação: (87)
• estratégia de dar prioridade à expansão da cobertura da educação primária: para alguns, uma consigna democrática e equitativa, para outros representa que só se quer oferecer aos setores populares a educação de base, monopolizando o acesso ao ensino superior para a elite: (87)
• prioridade conferida à acão pública estatal: para alguns o setor público é a garantia de equidade na oferta educacional; outras análises, no entanto, mostram que o Estado não é, por si só, uma garantia de equidade e que, ao contrário, pode exercer sua ação como aparato de dominação; (87)
• a expansão das novas tecnologias: para alguns é promessa de realização de todas as utopias; para outros, constitui uma ameaça destinada a reforçar as desigualdades e os controles sobre os cidadãos; (88)
• os objetivos da educação como atividade destinada à formação integral da personalidade são agora reivindicados não só pelos progressistas, mas também por atores que, no passado, eram identificados como fortes opositores a essas propostas. (88)
O esgotamento do paradigma da modernização
A crise da educação está associada ao esgotamento da organização social baseada na 'modernização'. Historicamente, a modernidade esteve associada quase exclusivamente ao aspecto da racionalidade. (88/89)
A educação constitui, hoje, um dos fatores mais importantes na luta entre racionalidade e subjetividade. Os sentimentos e as paixões só eram promovidos e permitidos nas áreas que cumpriam um forte papel integrador - nação, pátria. A socialização escolar estava destinada a promover comportamentos ajustados às exigências de um sistema baseado em regras impessoais e comuns a todos. (89)
A família é a responsável pela chegada do aluno à escola em condições de educabilidade, tanto materiais como psicológicas. Só sobre essa base a escola pode assumir sua tarefa especializada e parcial, ou seja, racional. (89)
As pedagogias que davam ênfase à formação para a liberdade e para a criatividade foram condenadas a desenvolver-se fora dos limites da escola pública. (90)
A crise atual é a crise das concepções unidimensionais da modernidade: a racionalidade que nega a subjetividade e o valor da liberdade levou ao autoritarismo; a mera subjetividade, sem a racionalidade da ciência, conduz, da mesma forma, ao autoritarismo. O desafio da educação é encontrar a articulação entre racionalidade e subjetividade no plano de uma ação social. (91)
Os fins da educação
Uma das características do processo de modernização foi a ruptura com a ideia de 'fins últimos', os quais toda ação humana deveria tender a alcançar. A educação organizou-se para cumprir sua função de integração social. A carência de 'fins últimos' põe em crise a crença de que temos algo a transmitir às novas gerações. (91/92)
Devemos, então, discutir o sentido da atividade educativa, pois a ausência de sentido leva a propostas que representam um retorno à ideia de 'fins últimos e sagrados', que não se discutem e são impostos às pessoas, ou a propostas neoliberais, que se traduzem no desenvolvimento de um individualismo anti-social, na busca de interesses individuais independentemente de suas consequências para o equilíbrio social. (93)
A escola total
A escola definia-se por seu caráter de instituição de socialização secundária: pressupunha que o núcleo básico da personalidade e da incorporação à sociedade já estava adquirido, e sua função concentrava-se na preparação para a integração social. Esse modelo esgotou suas possibilidades, e a função da escola deve ser redefinida. (93)
As mudanças mais importantes suscitadas pelas novas demandas à educação: que esta incorpore, de forma sistemática, a tarefa de formação da personalidade, além do desenvolvimento cognitivo; que rompa com a neutralidade em relação às diferenças (uma tentativa de suprimir as desigualdades ou a tentativa de uniformizar e enquadrar todos num modelo cultural dominante e/ou legitimar as desigualdades através do diferencial de sucesso no rendimento educacional). (94/95)
Sabemos que, para que se suprimam as desigualdades, é preciso levar em conta as diferenças, e, além disso, o desenvolvimento da personalidade supõe que se ensine a assumir a escolha das identidades de gênero, religião e cultura. A tarefa de formação da personalidade afeta todas as dimensões da instituição escolar: currículo, critérios de avaliação, corpo docente, etc. (95)
Assumir a formação da personalidade implica que a escola não poderá mais deixar de lado certos temas, mas deverá assumi-los, promovendo seu conhecimento e sua discussão. O debate sobre a compreensão do fenômeno religioso e suas diferentes expressões, por exemplo, é fundamental na formação de uma cultura cidadã. (96)
É muito importante, ainda, reforçar a formação ética, na qual valores como responsabilidade, tolerância, justiça e solidariedade constituem o corpo central da formação do cidadão, e que se rechacem tanto a negação da subjetividade, como a ideia de um modelo único de pessoa ao qual todos devemos tender. (96)
É preciso promover o vínculo entre os diferentes, promover a discussão, o diálogo e a troca. Definir formas de promover o 'desejo de saber' e de formar os quadros de referência para processar a informação disponível que circula na sociedade. (96/97)
A função de integração social deverá ser redefinida a partir da preparação para o trabalho em equipe, o exercício da solidariedade, o reconhecimento e o respeito às diferenças. Essa formação exige, também, uma articulação entre o grupo e o indivíduo. Ser membro de uma equipe implica dispor de algo para contribuir. A excelência individual não é contraditória com o trabalho coletivo. (97)
As novas tecnologias permitem que se libere o tempo aplicado a tarefas rotineiras, para liberar o professor da tarefa de fornecer informações ou de preencher formulários administrativos, para permitir que ele reforce a atenção personalizada, conforme o ritmo de cada aluno, e para o trabalho em equipe. Formar as capacidades de análise e síntese, e de criatividade. A base do novo trabalho é a motivação para o esforço que o processo de aprendizagem requer. (97/98)
O simplismo do entretenimento e a ausência de perspectivas de trabalho são fatores muito poderosos de desmotivação para o esforço de aprendizagem. A promoção de estratégias para o tempo de lazer baseadas em atividades de grupo constitui o ponto de partida para tornar a distração um fator educativo. (99)
A escola deve assumir a tarefa de promover estratégias baseadas na superação da passividade e do individualismo. O desafio é promover condutas nas quais a equipe, e não o indivíduo isolado, seja o fator de êxito, e o triunfo não signifique a eliminação dos outros, sem os quais não existe a possibilidade de continuar competindo. (99)
Escola e sociedade
O modelo de desenvolvimento capitalista implica alto grau de dissociação entre as capacidades para a atividade produtiva e as capacidades requeridas pelo desenvolvimento da personalidade. (99/100)
Durante as últimas décadas a expansão educacional produziu o seguinte fenômeno: os egressos do ensino superior começaram a ter acesso a postos tradicionalmente ocupados por pessoas formadas no ensino médio; estas, por sua vez, ocuparam os postos para os quais antes só se exigia educação básica; e os que só possuem educação básica tendem a ser os candidatos mais certos ao desemprego. Não obstante, já se percebe que o desemprego afeta também os mais preparados. (100)
Um dos desafios futuros é a articulação de uma proposta baseada na desvinculação entre educação e mobilidade social. A dificuldade é que ela perde um dos aspectos mais dinamizadores da expansão educacional. (101)
Outro desafio é promover o prestígio e a importância da formação básica, que implica romper com uma das diretrizes mais arraigadas no funcionamento de nossos sistemas educacionais: supor que quanto mais básico é o conteúdo, menores são os recursos necessários. Os professores tendem a abandonar os postos dos primeiros graus. Os recursos econômicos também são distribuídos da mesma maneira. Inverter essa tendência será uma das tarefas mais importantes do futuro. (102)
As tendências demográficas indicam uma progressiva diminuição da demanda de acesso à educação básica, acompanhada de maiores demandas de educação permanente. Essa mudança implicará uma reformulação do conceito de obrigatoriedade do ensino. (102)
Capítulo 7 - Sistema ou instituição
A tendência à personalização dos serviços e a ênfase no desenvolvimento integral da personalidade colocam exigências incompatíveis com algumas das diretrizes dos modelos tradicionais de organização e gestão das atividades educativas. (103)
O Construtivismo ofereceu os fundamentos para a proposta de atribuir aos estabelecimentos e aos próprios docentes boa parte das decisões em termos curriculares, permitindo um processo de aprendizagem baseado na experiência acumulada tanto pelos alunos como pela equipe docente. (103)
A tendência agora é transformar as grandes organizações burocráticas em redes planas de instituições menores, destinadas a melhorar a eficiência da produção e a ajustar-se às necessidades dos clientes, e combater os problemas gerados pelos sistemas centralizados: ineficiência, pouca responsabilidade pelos resultados, isolamento, corporativismo, rigidez e imobilismo. (103) Isso pressupõe passar de um sistema para uma instituição. (104)
Desenho institucional e justiça
Organizar a atividade educativa em função de um sistema significa, da perspectiva conservadora, a ideia de integração, de incorporação de todos a um sistema hierarquizado e aos valores desse sistema; da perspectiva democrática, que o sistema garante a equidade, a igualdade em termos da utilização do principal mecanismo de ascensão social. (104)
A educação, de acordo com esse pressuposto, foi organizada com base na ignorância de uma série de características que definem a condição e as possibilidades de cada um em relação à aprendizagem, ao desenvolvimento da inteligência e das capacidades pessoais.
A ignorância desses fatores foi entendida como uma condição da justiça. Tratar todos da mesma maneira foi o princípio básico. (105)
A avaliação de resultados de aprendizagem fez emergir a reivindicação das diferenças, que resiste à ideia de tratamento homogêneo, e permitiu tratar cada um segundo suas necessidades. O conhecimento da 'especificidade' gera um novo princípio de vida social no qual a tolerância substitui a solidariedade e a imparcialidade substitui a igualdade e a equidade. A transparência gera, portanto, maior instabilidade. (105/106)
É imprescindível dotar de maior autonomia os estabelecimentos, e adequá-los a traços particulares. Mas não se pode deixar que a adequação às diferenças torne-se uma adequação à desigualdade e se rompa a coesão social mínima indispensável à vida em comum. (106)
O debate sobre a educação privada
De uma perspectiva neoliberal, a autonomia dos estabelecimentos e a introdução de uma lógica de funcionamento baseada nas instituições estão associadas à ideia de desregular o sistema educacional, atribuindo maior espaço à atividade privada. (107)
A controvérsia entre ensino público e ensino privado girou em torno de um eixo ideológico: ao Estado competia, com outras instituições, o controle da socialização da população. Atualmente, a controvérsia gira em torno das demandas pelo direito à educação, e aparecem argumentos de tipo financeiro-administrativo.
Em síntese, os principais argumentos para justificar a necessidade de expandir o ensino privado são: (107)
a) a pressão de determinados grupos para manter seus padrões culturais; (107)
b) o desafio de melhorar a qualidade da educação em contextos de restrição orçamentária; (108)
c) a necessidade de dinamizar o funcionamento das instituições educacionais; (108)
d) o maior interesse privado pela educação, em virtude da revalorização do conhecimento como fator de produção. (108)
Há ideias que permitem clarificar o debate. A primeira é que não há uma associação unívoca entre privatização da educação, modernização e desenvolvimento social. A segunda é que não há uma associação unívoca entre privatização e desregulamentação do funcionamento das instituições educacionais. A terceira é que não há uma associação unívoca entre privatização e melhores resultados de aprendizagem. (108)
Público/privado e desenvolvimento social
No que diz respeito ao ensino pré-primário, o setor privado atende mais da metade das matrículas. Nos últimos anos, no entanto, houve uma expansão significativa da matrícula pública, particularmente para setores tradicionalmente excluídos. (108)
A análise do ensino primário indica que o setor privado tem absorvido entre 10% e 15% das matrículas. No caso do ensino secundário, nos países em desenvolvimento, alcançam quase 30%, com declínio nos últimos anos. (109)
Em termos gerais há dois padrões de desenvolvimento:
• um, que se expressa numa concentração do esforço público no ensino primário, deixando um papel mais ativo para a atividade privada no ensino médio e superior; e
• outro, em que o setor privado assume maiores cotas no ensino primário e um papel menos ativo nos níveis posteriores.
Esses padrões refletem estruturas distintas de demanda educacional e, o que é mais importante, diferentes modelos de distribuição social dos recursos públicos. (109)
O Japão representa um modelo 'público/elitista': forte atuação do Estado na garantia da educação básica para toda a população e ensino superior de alta qualidade. O setor privado é muito importante no nível secundário. (110)
A experiência japonesa indica que a redução das exigências acadêmicas para permitir o ingresso massivo nas universidades privadas não gera maior equidade, mas, ao contrário, confere à educação pública a possibilidade de tornar-se um segmento de alta qualidade e prestígio. (110)
Outro exemplo é o Brasil: os dados indicam que, embora os esforços públicos sejam maiores na educação básica que na superior, existe uma porcentagem importante de matrícula primária privada. No entanto, as universidades públicas, como no Japão, são as que gozam de maior prestígio e nível de qualidade. (110)
Os filhos das famílias de classe alta frequentam escolas privadas primárias e secundárias de boa qualidade, onde obtêm o preparo que lhes permite ser aprovados nos exames de ingresso às universidades públicas gratuitas. Os filhos das famílias de poucos recursos, ao contrário, recebem uma educação primária e secundária pública, de baixa qualidade, que não os habilita nas provas de acesso à universidade pública e, portanto, têm de pagar por uma educação superior, geralmente de baixa qualidade. (110/111)
A grande diferença entre os dois casos reside nos níveis de equidade existentes na base do sistema educativo. Os mesmos resultados no nível de ensino superior têm significados muito diferentes quando se analisa o conjunto do sistema educativo. (111)
Escola privada e controle público
Existe uma diversidade de formas de regulamentação pública da atividade educativa privada. Na Holanda o Estado oferece subsídio e mantém fortes regulamentações em aspectos-chave: currículo, sistema nacional de exames ao final da escola elementar e da escola secundária, e controle dos critérios de seleção de estudantes. (112)
O Estado limita a possibilidade de pagamentos adicionais; paga os salários dos professores - do setor público e privado - mas não permite complementações salariais; fornece os edifícios - às instituições públicas e privadas - através dos municípios, mas com reembolso pelo governo central. O resultado é que as escolas privadas não recrutam alunos de origens sociais distintas dos das escolas públicas. (112)
Privatização e qualidade da educação
Em geral, o ensino privado recruta seu alunado em setores médios e altos, criando dessa forma um fenômeno circular: os alunos dotados de melhores antecedentes familiares recebem uma oferta escolar caracterizada pela disponibilidade de equipamento e de pessoal adequado, e obtêm resultados mais altos que os produzidos pela escola pública. (112)
Há casos em que a oferta privada estendeu-se aos setores populares com base em subsídios estatais. Argumenta-se que ficaria mais barato financiar um estabelecimento privado que ofereça educação gratuita, do que financiar uma escola pública. (112)
A identidade institucional como explicação para os bons resultados
Os dados indicam que a explicação de bons resultados em aprendizagem está muito mais na dinâmica institucional, do que no caráter público ou privado. Os melhores rendimentos estão associados à possibilidade de elaborar um projeto educativo do estabelecimento escolar, definido por objetivos claros, metodologias de trabalho compartilhadas, espírito de equipe e responsabilidade diante dos resultados. (114)
Políticas de fórmulas mistas, que concentrem o gasto educativo nas populações com maiores carências, revelam-se muito mais equitativas que um serviço público-estatal que trate de forma homogênea populações diferentes. A dicotomia entre eficiência e dinamismo como patrimônio do setor privado e rigidez e ineficiência como patrimônio do setor público não é mais sustentável. (115)
A autonomia dos estabelecimentos constitui uma via promissora para nos aproximarmos desses objetivos, desde que sejam definidos mecanismos de articulação que evitem a atomização e garantam uma efetiva coesão. (115)
O desafio consiste em promover a coesão entre as instituições educacionais a partir de elementos comuns, presentes no projeto de cada instituição. Para isso, o conceito que pode permitir uma nova articulação entre a autonomia dos estabelecimentos e a necessária coesão entre eles é o conceito de rede. (115)
Redes educativas
É preciso distinguir duas dimensões que aludem às diferenças que precisam ser superadas para que uma rede funcione: adimensão tecnológica e a dimensão social. (115)
A dimensão tecnológica compreende as infraestruturas materiais que constituem o suporte da rede e asseguram a comunicação e os fluxos de informação. A dimensão social compreende tanto o sistema de relações entre os indivíduos, ligados ou vinculados por algum interesse comum, como a cultura, que regula de forma não-explícita os contatos entre os membros da rede. (115/116)
Participar de uma rede implica entrar em contato (pela voz, pelo gesto, pela escrita, etc.), e ter capacidade de entender-se, em torno de um projeto comum. Mas a característica fundamental é que uma rede pode ser mobilizada pelas iniciativas de cada um dos participantes e usuários. (116) A rede é o tipo de dinâmica que permite desenvolver o estímulo ao contato e ao intercâmbio entre os estabelecimentos, que compartilham estratégias comuns, que se associam para beneficiar-se de economias de escala, que partilham informações, análises e recursos, etc. O desafio é tornar essa prática uma prática legítima e estimulada. (118)
O papel do Estado consiste em definir os objetivos, avaliar os resultados e intervir onde eles não forem satisfatórios. Em países em desenvolvimento, algumas experiências de municipalização da oferta educacional evidenciam que as características do poder local podem ser um fator de rigidez tão forte quanto à oferta centralizada. Assim, o dilema que as políticas de descentralização e de atribuição de maior autonomia às instituições enfrentam é sua operacionalização. (118/119)
Convém ressaltar que a autonomia institucional implica autonomia profissional por parte do corpo docente. (119)
Capítulo 8 - Os docentes: profissionais, técnicos ou militantes?
As modificações que a atividade educativa está sofrendo afetam diretamente o corpo docente. Na maior parte dos casos, são percebidas mais como ameaça do que como novas oportunidades. Provocam sentimentos de insegurança, de desconfiança. (121)
Esse comportamento tem raízes profundas. É preciso reconhecer que nas últimas décadas ocorreu um processo claro de deterioração das condições de trabalho e de profissionalismo dos docentes. Por outro lado, os processos de descentralização foram motivados pelo desejo de romper a unidade sindical ou diminuir os gastos em educação, e não de melhorar a qualidade, sua eficiência ou a democratização do ensino. (121/122)
Profissionalizar ou desprofissionalizar?
O novo papel da educação e do conhecimento pressupõe a redefinição do papel dos educadores, pois implica níveis mais altos de profissionalização. Mas pode implicar, também, na desprofissionalização da atividade educativa. (122)
É preciso distinguir entre a melhoria das condições de trabalho e o desenvolvimento da 'capacidade profissional', isto é, das aptidões necessárias ao desenvolvimento da atividade profissional. Os estudos revelam que as melhorias introduzidas no processo de formação dos professores a fim de favorecer o 'status' não causaram um impacto significativo; e a melhoria da capacidade profissional não conseguiu neutralizar os efeitos de outras variáveis, tais como a origem social dos docentes e a alta proporção de mulheres. (123)
Muitos sustentam que a educação é uma atividade na qual a profissionalização não seria possível nem conveniente, visto que tem como objetivo determinar mudanças nas pessoas, e as decisões que o docente tem de assumir baseiam-se em opções éticas, em determinações culturais, em avaliações subjetivas e em teorias com escassa corroboração empírica, que não fazem utilização sistemática de um aparato teórico. (124)
Equipe docente versus docentes isolados
Um dos traços mais significativos da atividade profissional dos docentes é seu caráter individual. O esquema tradicional não estimula a discussão nem a co-responsabilização pelos resultados e obriga o docente a enfrentar sozinho a solução dos problemas que sua atividade coloca. Aqui reside um dos obstáculos mais importantes para o desenvolvimento de uma cultura técnica comum. (124)
A autonomia dos estabelecimentos permite a definição de um projeto pedagógico, que exige trabalho em equipe e acúmulo de experiências; os quais, por sua vez, permitem enfrentar com tranquilidade os diferentes aspectos do trabalho: ensino, avaliação, pesquisa, etc., além de ter implicações na gestão e nas condições de trabalho. (125)
Promover a inovação
Além do trabalho individual isolado, a cultura profissional do docente caracteriza-se por um forte ceticismo diante das inovações. Mas as análises mostram que o êxito das inovações depende do compromisso e da participação dos docentes. (125)
A inovação requer, também, lugares de encontro, formação e pesquisa para os professores e diretores, onde seja possível discutir os problemas de maneira menos corporativa. Requer, ainda, a instalação de uma rede que permita que interajam, partilhem experiências, e que os estimule e apoie. (126)
Prioridade aos lugares onde se dá a formação básica
Só com uma boa formação básica será possível desenvolver as capacidades requeridas para a atividade produtiva e cidadã. (126)
Nesse contexto as maiores demandas de profissionalismo aparecerão nos âmbitos em que a tarefa educativa foi mais desprofissionalizada: a formação básica. (126/127)
A formação básica é a que demanda níveis mais altos de profissionalização pedagógica. Ensinar a ler e escrever implica um conhecimento técnico muito específico. Colocar os melhores docentes nesses lugares deve ser uma das demandas democráticas mais importantes. (127)
Novos docentes
A diversificação dos lugares de produção de conhecimentos e a necessidade da educação permanente provocaram uma expansão, no âmbito da formação e nos tipos de educadores. Num contexto de evolução acelerada do conhecimento, só as pessoas vinculadas às atividades nas quais se produz e se utiliza o conhecimento serão capazes de dominá-lo de modo a poder transmiti-lo. (127)
Em consequência, teremos os docentes básicos, encarregados da formação do núcleo 'duro' da estrutura cognitiva e pessoal, e os docentes especializados, responsáveis pela formação em campos sujeitos a revisão e renovação permanentes. A articulação entre ambos será absolutamente necessária. (128)
A reação das corporações de docentes a qualquer iniciativa que tenda a romper o monopólio da função docente, se torna contraproducente se a dissociação entre os que têm o conhecimento e a informação e os que são responsáveis pelo ensino aumentar. Uma política de incorporação dos 'novos docentes' pode ser um fator de enriquecimento político e profissional. (128)
Docentes e militantes
Haverá um aumento significativo das exigências de compromisso pessoal do docente com os objetivos da tarefa educativa. A adesão a um projeto de equipe e a tarefa de formação da personalidade dos alunos implicam assumir de forma ativa os valores da democracia. (128)
Uma das dificuldades mais importantes para avaliar o trabalho docente, e orientar sua formação, é o pressuposto de que deve possuir as qualidades que vai formar nos alunos, ou, no mínimo, ter uma atitude que estimule essas qualidades. Nesse aspecto, é preciso destacar a importância do trabalho de equipe. (129)
A recuperação da paixão, do entusiasmo, é uma exigência, assim como a convicção de que todos podem aprender. As pesquisas mostram que as expectativas do docente cumprem um papel decisivo para o êxito dos alunos. (129/130)
Capítulo 9 - A reforma educacional
A crise não é uma crise parcial, e as mudanças não podem ser reduzidas a meros ajustes. As estratégias de mudança radical, originadas fora das instituições, fracassam porque provocam fortes resistências dos atores internos. As estratégias baseadas na capacidade interna são muito lentas, e acabam cedendo às pressões para satisfazer as demandas corporativas. As metodologias das reformas e a capacidade para implementá-las de forma efetiva são tão importantes como os conteúdos das propostas. (131/132)
O acordo educativo como base da reforma
Uma estratégia de transformação por consenso, por contrato entre os diferentes atores sociais, permite, por um lado, superar a concepção de que a educação é responsabilidade de um único setor e, por outro, organizar o nível de continuidade que a aplicação de estratégias, de médio e longo prazo, exige. (133)
À medida que o conhecimento e as capacidades das pessoas são reconhecidos como fundamentais para o crescimento econômico e a democracia, a definição da participação de cada setor passa a ser aspecto central. (133)
O consenso pressupõe o reconhecimento do outro e a negociação. Não elimina o conflito, não significa uniformidade. Mas a busca de conciliação, mediante o diálogo e os acordos para a ação, cria um mecanismo pelo qual esses conflitos são resolvidos. (134)
São responsabilidades do Estado a determinação de objetivos e prioridades; a avaliação dos resultados; o respeito às regras do jogo; a criação e implementação dos mecanismos que permitam compensar as diferenças. Essa ação requer a disponibilidade de diagnósticos precisos, de um alto grau de informação, e mecanismos de avaliação que permitam efetuar mudanças antes que certos resultados se consolidem. (135/136)
Reforma ou inovação institucional?
Promover acordos para estratégias de longo prazo pode parecer contraditório com uma situação que muda constante e rapidamente. No entanto, os índices mais altos de dinamismo ocorrem em sistemas que mantêm um alto grau de estabilidade em determinados núcleos básicos de sua estrutura. (136)
Uma mudança educacional baseada nas inovações implica que se passe de um enfoque de mudança centrado na oferta para um enfoque baseado no papel ativo da demanda. Nesse sentido, oferecer mais e melhores informações aos usuários do sistema constitui a linha de ação mais promissora. (137)
As estratégias de mudança educacional têm um caráter sistêmico
As mudanças dependem da interação de múltiplos fatores, que devem atuar de forma sistêmica: ações de capacitação, reforma dos conteúdos, da estrutura salarial, etc. O problema central é estabelecer a sequência e a medida em que deve mudar cada um dos componentes do sistema. (138)
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