20/08/2013

O NOVO PACTO EDUCATIVO Juan CarlosTedesco


 

Apresentação (Walter E. Garcia)

O autor é diretor da Oficina Inter­nacional de Educação da UNESCO (Genebra), e este livro traz temas recorrentes na literatura pedagógica uni­versal: competitividade, cidadania, crise e reforma dos sistemas educativos, qualidade, novas tecnologias, etc. Os temas da globalização e da abertura econômica só começaram a ter um debate mais intenso, no Brasil, na década de 90. O grande tema sempre foi a dívida soci­al, com seus desdobramentos. (9)

Inúmeros fatores tornaram irrelevante a postura histórica da for­mação dos sistemas tradicionais de educação, de que a qualificação das pessoas era feita para atender deman­das. A reorganização dos sistemas de produção coloca em relevo novas atribuições, e exigem novas posturas dos atores educacionais: o aparecimento de novas necessidades educativas que se agreguem às fun­ções tradicionais da escola. (10)

Esperamos que estas mudanças não se transformem em cortina de fu­maça para abandonar velhos dogmas da educação pública, gratuita, univer­sal e obrigatória. A substituição des­se paradigma por duvidosas políticas compensatórias pode representar um retrocesso inominável e uma traição para com o futuro do país. (10)

 

Introdução


A queda do muro de Berlim sim­boliza a crise dos parâmetros tradicio­nais de definição das identidades políticas e ideológicas. Os movimentos educacionais não estão alheios a essa crise, e as certezas do passado desapa­receram. A realidade contém parado­xos que são incompreensíveis nos ter­mos das categorias tradicionais. (11)

Ninguém sabe mais onde está si­tuado. As respostas simples do passa­do não são mais suficientes para definir uma orientação político-educacional que responda aos objetivos de democracia e equidade na distribuição do conhecimento. (12)

Este livro busca refletir sobre o papel da educação neste novo cenário social, e tenta definir uma alternativa, tanto às tendências neoliberais como às tendências antimodernas fundamentalistas. (12)

O olhar para o passado não tem nenhuma pretensão de análise histó­rica. Tenta ser um instrumento para entender aquilo que está mudando. O olhar para o futuro tampouco preten­de anunciar o que virá, mas chamar atenção sobre para onde deveríamos orientar nossas ações. (12)

 

Capítulo l - Vivemos uma revolução


Crise e Educação são termos frequentemente associados. Por con­sequência, o sistema educacional tem sido uma das áreas das políticas pú­blicas mais recorrente e sistematica­mente "reformadas". (15)

A crise da educação não é mais a mesma.

A crise da educação já não se apre­senta como um fenômeno de insatis­fação no cumprimento de demandas relativamente estabelecidas, mas como uma expressão particular da cri­se do conjunto das instâncias da estrutura social: desde o mercado de tra­balho e o sistema administrativo até o sistema político, a família e o sistema de valores e crenças. (15)

A crise já não provém da forma deficiente de a educação cumprir os objetivos sociais que lhe são atribuí­dos, mas do fato de não sabermos que finalidades ela deve cumprir e para onde deve efetivamente orientar suas 
ações. Agora a crise implica em modifi­car orientações e comportamentos. (15)

Estamos vivendo um processo de profunda transformação social. Não estamos diante de mais uma crise conjuntural do modelo capitalista, mas diante do surgimento de novas formas de organização social, econômica e política (sociedade da in­formação, sociedade pós-capitalista, sociedade pós-industrial, terceira onda, etc.) (16)

Antes, os críticos encontravam-se entre os próprios educadores, pesqui­sadores e acadêmicos. Agora se encontram, especialmente, entre atores externos ao processo pedagógico e às instituições educacionais. Os portado­res do discurso 'revolucionário' são agora pessoas vinculadas às tecnologias de ponta, aos setores mais modernos da economia. (16)

 

Em que consiste esta nova revolução


Há algumas características cen­trais que prefiguram a sociedade do futuro, e escolhemos três áreas para descrever os processos de transforma­ção: o modo de produção, as tecnologias da comunicação e a democracia política. (17)

A competição exacerbada pela conquista de mercados está modifi­cando os padrões de produção e organização do trabalho: estamos passan­do de um sistema de produção dirigi­do ao consumo de massas para um sis­tema de produção dirigido a um con­sumo diversificado - as novas tecnologias baseadas na informática permitem a produção de pequenas quantidades de artigos cada vez mais adaptados aos diferentes clientes. (17)

A flexibilidade na produção se expressa: nas noções de polivalência, nas equipes multitarefa, nas plantas multiprodutos, em que se valoriza a capacidade da pessoa para trabalhar em equipe e adaptar-se a condições e exigências de mudança. (18)

Além da flexibilidade, a produ­ção moderna requer uma distribui­ção diferente da inteligência. O taylorismo e o fordismoda produ­ção em massa requeriam uma orga­nização do trabalho hierarquizada de forma piramidal, na qual a criatividade e a inteligência concen­travam-se na cúpula, enquanto o restante das pessoas devia executar meca­nicamente as instruções recebidas. (18)

As novas formas de produção ne­cessitam de uma organização mais plana e aberta, com amplos poderes de decisão nas unidades locais e com a inteligência distribuída de forma mais homogênea. O conceito de 'qualidade total' expressa essa ne­cessidade. (18)

A inovação e a melhora contínua tornaram-se uma necessidade. Os ci­clos de vida dos produtos encurtam-se cada vez mais, obrigando a uma renovação constante dos projetos, o que estimula a capacitação permanente e a criatividade, assim como o tra­balho em equipe e a associação com outros setores. Por outro lado, a reno­vação constante gera uma forte insta­bilidade interna. (18)

As novas condições de produção, baseadas no uso intensivo de conhe­cimentos, têm um potencial de exclusão muito significativo - só pode as­segurar condições de plena realização a uma minoria de trabalhadores. (19)

As novas tecnologias da informa­ção têm um impacto não só na produ­ção de bens e serviços, mas também no conjunto das relações sociais. A acumulação de informação, a veloci­dade na transmissão, a superação das limitações espaciais, a utilização si­multânea de múltiplos meios (ima­gem, som, texto) são, entre outros, ele­mentos que explicam o enorme poten­cial de mudança que essas novas tecnologias apresentam. (19)

As mudanças nas tecnologias da comunicação alteram a estrutura de interesses (as coisas nas quais pensamos), mudam o caráter dos símbolos (as coisas com as quais pensamos) e modificam a natureza da comunidade (a área na qual se desenvolvem os pen­samentos). A invenção da imprensa e seus impactos são muito parecidos, não só a atitude dos autores mudou, como também a dos leitores: antes, a leitura dos livros era um ato coletivo. Embora se tenha ampliado o acesso ao conhecimento, também se criou uma exigência do domínio do código de leitura. (19)

Por fim, as mudanças provocadas no processo produtivo e nas relações sociais pelo uso das tecnologias da informação têm impacto direto sobre a vida política. Qual será a fórmula política por meio da qual se expressará esta nova realidade? (20)

A educação diante da nova realidade social

 

O que há de novo é o papel que desempenham o conhecimento e a in­formação tanto na própria produção como no consumo.É consenso que o conhecimento constitui a variável mais importante na explicação das novas formas de organização social e econômica. (20)

A educação, entendida como a atividade por meio da qual se produz e se distribui o conhecimento, assume, portanto, uma importância inédita em, pelo menos, dois sentidos:

• Do ponto de vista político-social os 'detentores do conhecimento' desem­penham um papel muito importante, tan­to na geração de conflitos como em sua solução. As disputas pelos lugares onde se produz e se distribui o conhecimento constituem o centro dos conflitos soci­ais do futuro - o respeito e a proteção aos direitos de propriedade intelectual, a negociação sobre o controle da circu­lação de produtos culturais, como os fil­mes e os vídeos. Os conflitos sociais e políticos também começam a ter uma maior densidade de informação, de co­nhecimentos e de utilização dos instru­mentos tecnológicos: a manifestação através da Internet permite a participa­ção, independentemente do lugar físico e da posição de cada um na hierarquia das organizações; (20/21)

• Do ponto de vista dos conteú­dos da educação, o desenvolvi­mento das tecnologias da informa­ção cria a necessidade de evitar que se produza a separação defini­tiva entre conhecimento e pensa­mento. As tecnologias possuem uma enorme capacidade de acúmulo e processamento de infor­mação. Esse processo, levado a seu extremo, suporia que fôssemos in­capazes de entender, de pensar e de falar aquilo que, no entanto, podemos fazer. (21/22)

Nesse contexto, a reflexão sobre o papel da educação na sociedade e em seu desenvolvimento implica definir os conhecimentos e as capacidades que a formação do cidadão exige e a forma institucional pela qual esse pro­cesso de formação deve ocorrer. As instituições escolares não criam o con­teúdo do processo de socialização. Ao contrário, é o conteúdo da socializa­ção que define o desenho das institui­ções escolares. (22)

Mas é preciso perguntar, primei­ro, se a escola será a instituição socializadora do futuro e se a forma­ção das gerações futuras exigirá esse mesmo desenho institucional. A soci­edade do futuro deverá ser dotada de instituições capazes de manejar a in­certeza. A experimentação começará a ser admitida na reflexão teórica e na prática política. (23)

 

A reflexão filosófica volta a ter importância


Trata-se de colocar as análises téc­nicas e operacionais no quadro global de uma concepção que dê sentido a nossas ações, e a discussão dos fins da educação em suas expressões téc­nicas, senão seriam não só estéreis do ponto de vista da ação, mas também pouco férteis teoricamente. (23)

 

Capítulo 2 - A crise do sistema tradicional

 

Nas sociedades ocidentais, o sis­tema educacional respondeu, original­mente (final do séc. XIX), às exigên­cias políticas do processo de constru­ção da democracia e dos Estados na­cionais e às exigências econômicas de construção do mercado. (24)

Expandiu-se, com a estratégia de criar um sistema educacional articu­lado em níveis (primário, secundário e superior), correspondentes às idades e ao lugar que cada classe ocuparia na hierarquia social. Sequencialidade hierarquizaçãoforam as duas catego­rias associadas, em torno das quais organizou-se a atividade educativa escolar. A ascensão implicava o aces­so a estágios cada vez mais comple­xos de compreensão da realidade e a posições sociais de maior prestígio e poder. (25/26)

A crise do sistema tradicional ma­nifesta-se na impossibilidade de man­ter a vigência dessas categorias. Asequencialidade de acesso ao conhe­cimento é questionada pela necessi­dade da aprendizagem e da formação permanente, e pela difusão da infor­mação geral sem discriminação de idades que os meios de comunicação de massa realizam. A hierarquização é questionada pelo acesso universal à educação, pela ruptura dos víncu­los de autoridade e pela dissociação entre ascensão educacional e ascen­são social. (26)

 

A formação do cidadão: nação e democracia

 

A história da educação ociden­tal está relacionada à história da construção da nação, da democracia e do mercado. A partir do surgimento do Estado-nação, a legi­timidade política passou a basear-se na soberania popular. A educação, entendida como processo de socia­lização, teve enorme importância na consolidação da nação; foi o instru­mento por meio do qual se deu a integração política. A formação da cidadania implicou a adesão à na­ção acima de qualquer outro vínculo - religioso, cultural ou étnico. (26)

A nação e a democracia são cons­truções sociais e, portanto, devem ser ensinadas e aprendidas. O que houve de peculiar na formação do cidadão foi a adesão a determinadas entida­des socialmente encarregadas de di­fundir as normas de coesão social e de aceitação das regras de disciplina social. (26/27)

A coesão social expressa-se pela aceitação de uma concepção comum do mundo e da sociedade e pela incorporação a um sistema que teorica­mente seja capaz de abranger todos [todos o quê?]. A coesão promovida pelo processo de socialização escolar teve um forte caráter hierárquico, numa escala de níveis crescentes de complexidade, autoridade e hierarquia das posições sociais. A atividade edu­cacional foi percebida e conceitualizada em termos da ordem social dominante. (27)

A socialização escolar promovia o respeito à autoridade, o valor da dis­ciplina, a aceitação de papéis e visões do mundo predefinidos, que domina­vam a formação da família. A escola pública representava os valores e os saberes universais, aspectos que se colocavam acima das normas culturais particulares dos diversos grupos que compõem a sociedade; foi projetada como uma instituição que assu­me a representação da vontade e dos interesses gerais, cuja responsabilida­de era do Estado. (28/29)

O projeto educacional caracteri­zou-se por uma articulação entre seu componente quantitativo (acesso universal e obrigatório) e qualitativo (laicismo, lealdade à nação, língua oficial, etc.). A confiança na educa­ção das pessoas foi um elemento fun­damental do êxito na construção do Estado-nação. Estava baseada na projeção da possibilidade de um futuro sempre melhor, de uma ampliação progressiva dos espaços de participa­ção, liberdade e justiça. (29)

 

O "déficit de socialização" da so­ciedade contemporânea

 

As duas ideias básicas que defini­ram a formação do cidadão - demo­cracia e nação - acham-se em proces­so de revisão. O desaparecimento do antagonismo entre Capitalismo e So­cialismo provocou a obsolescência do sistema de representação. A ideia de cidadania associada à nação começa a perder significado. Em seu lugar aparece uma adesão a entidades supranacionais e uma retomada do comunitarismo local, no qual a integração define-se fundamental­mente como integração cultural, e não política. (29/30)

Vivemos um período no qual as ins­tituições educativas tradicionais, par­ticularmente a escola e a família, estão perdendo capacidade para transmitir com eficácia valores e normas cultu­rais de coesão social, o que caracteriza o "déficit de socialização". (30)

Os novos agentes de socialização, os meios de comunicação de massa, não foram projetados como entidades encar­regadas da formação moral e cultural das pessoas. Ao contrário, seu projeto su­põe que essa formação já esteja adqui­rida e, por isso, a tendência dos meios é atribuir aos próprios cidadãos a responsabilidade pela escolha das mensagens que querem receber. (30/31)

 

Família e socialização

 

socialização primária, que nor­malmente se dá no seio da família, é a fase que o indivíduo atravessa na infância e mediante a qual se transforma em membro da sociedade; é a mais importante para o indivíduo, com ela ele adquire a linguagem, os esquemas básicos de interpretação da realidade e os rudimentos do aparato legitimador. (31)

As duas características mais im­portantes da socialização primária são a carga afetiva e a identificação absoluta com o mundo tal como os adul­tos o apresentam. Nesse sentido, é importante perceber que a socialização primária implica mais do que uma aprendizagem puramente cognitiva. Ela se realiza em circunstâncias de enorme carga emocional. (31)

socialização secundária é todo o processo posterior, que incorpora o indivíduo já socializado a novos setores do mundo objetivo de sua so­ciedade. (31)

Na sociedade atual, os conteúdos da socialização primária são transmi­tidos com uma carga afetiva diferente da do passado. Os grupos e as opções às quais uma criança é exposta ten­dem a diferenciar-se, a multiplicar-se e a modificar-se com uma velocidade sem precedentes. (31/32)

 

A evolução do individualismo

 

O credo do século XX é que cada pessoa é única, cada pessoa é ou de­veria ser livre, cada um de nós tem ou deveria ter o direito de criar ou cons­truir uma forma de vida para si, e de fazê-lo por meio de uma escolha livre, aberta e sem restrições. Essa am­pliação das possibilidades de escolha tem consequências: (32/33)

• na composição e no funcionamen­to da família: a incorporação da mu­lher no mercado de trabalho, a tendência a reduzir o número de filhos, o au­mento das separações e do número de filhos que vivem sozinhos ou com um dos pais. Além disso, o direito de cada um a definir sua própria vida supõe que os pais adotem uma conduta menos 'autoritária', menos impositiva; (33/34) 
• produz-se uma diminuição do tempo real que os adultos significati­vos passam com seus filhos; esse tem­po é agora ocupado por outras insti­tuições - escolas, creches, etc., ou pela exposição a meios de comunicação (quando a criança está só diante das mensagens que recebe). Os adultos significativos para a formação das 
novas gerações tendem a diferenciar-se. O ingresso nas instituições é cada vez mais precoce; (34) 
• os adultos perderam a segurança e a capacidade de definir o que que­rem oferecer como modelo às novas gerações. (34) 

Num sentido mais geral e profun­do, a socialização primária começa a ser transmitida com uma carga afetiva diferente da do passado. (34)

 

A televisão: o desaparecimento da infância


A ausência de escolha supõe a au­sência de informação sobre as opções possíveis. Ampliar o acesso à informação implica aumentar a possibili­dade de escolha, revelar o segredo que existia, a perda do tabu, a incorpora­ção da incerteza. (34)

A televisão, particularmente, está revelando segredos da sexualidade, da violência e da capacidade dos adultos para dirigir o mundo. A televisão faz a criança ver o mundo tal como ele é. Na socialização tradicional, essa rea­lidade era negada; para obter informa­ções era necessário dominar os códi­gos de acesso da leitura e da escrita, e estar presente nos cenários onde essa realidade se produzia. (35/36)

A televisão suprimiu a barreira que a leitura impunha ao acesso à infor­mação. A programação, por ser geral - dirigir-se a um público indiferenciado - evidencia todos os segredos da vida sem respeitar idades nem sensibilidades; não discrimina momentos nem sequências na difusão da informação. (36)

Ver televisão não requer nem de­senvolve habilidade especial; estabe­lece as condições de comunicação que existiam antes da imprensa, e desfaz as linhas de separação entre crianças e adultos; suprime as exigências para o acesso à informação. (36)

À medida que a informação adul­ta chega às crianças, a curiosidade delas se enfraquece, assim como a autoridade dos adultos. (36)

A socialização familiar tradicional baseava-se na existência da infância como categoria especial, diferente. A distinção entre infância e vida adulta apoiava-se na existência de âmbitos desconhecidos, de segredos e da ideia de 'vergonha'. (36)

Os segredos (vida sexual, dinhei­ro, violência, morte, doenças) eram mantidos e iam sendo revelados de forma progressiva, à medida que a cri­ança estava em condições de ter aces­so a esse conhecimento. A identidade infantil definia-se pela ignorância des­ses segredos, a dos adultos pelo co­nhecimento e capacidade de controle sobre eles. (36)

Essas mudanças afetam as rela­ções entre a família e a escola. As crianças chegam à escola com um núcleo básico de desenvolvimento da personalidade caracterizado pela de­bilidade dos quadros de referência, ou com quadros de referência que dife­rem dos que a escola supõe e para os quais se preparou. (37)

A escola era uma continuação da família. Mas na família estabeleceu-se a diferenciação, o respeito à diversidade, a ampliação dos espaços de escolha e a personalização. Na esco­la, manteve-se a indiferenciação, a resistência à diversidade. As opções clássicas transformaram-se em puro formalismo, baseado em funciona­mentos burocráticos, que debilitam a autoridade e a legitimidade da men­sagem da escola. (37)

 

Escola e socialização: o desapa­recimento do professor

 

As causas da perda da capacidade socializadora da escola vão desde a massificação da educação, a perda de prestígio dos docentes e a rigidez dos sistemas educacionais, até o dinamis­mo e a rapidez da criação de conheci­mentos e o aparecimento dos meios de comunicação de massa. (37)

A maior evidência é a deteriora­ção do professor como agente de so­cialização. Produziu-se um proces­so de desaparecimento das distin­ções entre professor e aluno, acom­panhado por um processo de perda de significação social das experiên­cias de aprendizagem que se reali­zam na escola. (38)

A crise da autoridade adquire sua expressão máxima quando chega às áreas pré-políticas de exercício da autoridade, como são as relações entre professores e alunos e entre pais e filhos. (38)

Os docentes, em consequência, tenderam a alhear-se do que lhes era próprio e específico. A ampliação dos saberes nos processos de formação docente esteve vinculada a regras de hierarquia, de critério e de seleção: avaliação, currículo, orientação, soci­ologia e política da educação, pesqui­sa, etc. A ampliação desses saberes teve um forte efeito desestabilizador, na medida em que gerou um alheamento da prática da aula. (39/40)

 

A ausência de sentido

 

A socialização atual enfrenta a perda de ideais, a ausência de utopia, a falta de sentido. A perda de finalidades faz desaparecer a promessa so­cial ou política de um 'futuro melhor'. O fim da utopia provocou a sacralização da urgência, erigida em categoria central da política. A perda de sentido deixa os educadores sem pontos de referência. (41/42)

 

Capítulo 3 - Qualidade para todos

 

A crise se localiza mais no víncu­lo entre qualidade e quantidade do que na qualidade da educação em si mes­ma. No modelo tradicional, esse vín­culo era direto e linear: níveis mais altos de complexidade qualitativa es­tavam associados a menor quantida­de de indivíduos capazes de ter aces­so a eles. (45)

A expansão da matrícula escolar em todos os níveis rompeu o equilí­brio tradicional, provocando um "ex­cesso de certificação" educacional em relação à hierarquia social, o que ex­plica a desvalorização geral dos diplo­mas e a crescente falta de correspon­dência entre nível educacional e pos­tos de trabalho. (45)

A definição do que se ensina e de quem tem acesso a essa aprendiza­gem tornou-se fator central da definição sobre a distribuição do poder e da riqueza. (46)

 

Competitividade e cidadania

 

O que mais chama atenção nos debates acerca do futuro é a impor­tância que os não-educadores (empresários dos setores tecnologicamente mais avançados da economia, profis­sionais da comunicação) conferem à educação, ao papel do conhecimento, da informação e da inteligência no processo produtivo. (46)

O conhecimento tem virtudes de­mocráticas intrínsecas como fonte de poder; diferentemente das fontes tradicionais de poder (força, dinheiro, terra), o conhecimento é sempre ampliável. Um mesmo conhecimento pode ser utilizado por diferentes pes­soas, e sua utilização pode produzir mais conhecimento. (46/47)

As empresas se classificarão em categorias vinculadas à intensidade de conhecimento que utilizem. A estru­tura ocupacional será baseada em três categorias: (47)

• serviços rotineiros, que implicam a execução de tarefas repetitivas; 
• serviços pessoais, que supõem a realização de tarefas rotineiras e repetitivas oferecidas cara a cara (servente, babá, taxista, mecânico, etc.);
• serviços simbólicos, que se refe­rem à identificação e solução de pro­blemas, e definição de estratégias. Dependem daabstração, do pensamento sistêmico, da experimentação e da ca­pacidade de trabalhar em equipe. (48)

O conceito de 'inteligente' inclui ca­pacidades não-cognitivas: afetos, emo­ções, imaginação e criatividade. (48)

 

Redefinição da relação educação-mercado de trabalho

 

As capacidades requeridas para o exercício da cidadania e para a atividade produtiva abrem novas perspectivas ao papel da educação. (51)

Segmentação 
exclusão são os dois fenômenos que acompanham a expan­são da economia baseada no conheci­mento. A incapacidade do novo modo de produção para incorporar a popula­ção, de maneira estável, tem como con­sequência o desemprego, a pobreza, a violência, a intolerância. (52/53)

A flexibilidade leva à subcontratação de partes do processo produtivo e à polivalência de seu pes­soal, que deve adaptar-se a condições de trabalho em mudança. Esta exigên­cia de polivalência e de adaptação permanente, unida às exigências de trabalho em equipe e de criatividade, gera um clima desestabilizador muito forte, tanto no plano individual como no institucional. (53)

Uma das formas de resolver esta instabilidade é dotar as pessoas que ocupam esses postos de trabalho de condições de seguridade muito altas, como contrapartida a uma entrega to­tal às exigências da empresa. Cada vez é mais importante a formação no pró­prio processo de trabalho. Essa ten­dência pode derivar num cenário que se assemelharia à situação corporativa medieval: o setor 'dominante' seria o grupo de trabalhadores que possui os conhecimentos; os excluídos seriam quase 'inúteis'. (54/55)

Do ponto de vista político, esses níveis tão altos de exclusão só poderi­am manter-se com níveis igualmente altos de autoritarismo. As alternativas a esse cenário baseiam-se na definição de estratégias para manter a coesão social. O postulado central é evitar que o trabalho seja monopolizado por uma elite da sociedade. Esse cenário prenun­cia o eixo de debates sobre as orienta­ções educativas do futuro. (56)

O conflito e a tensão transferem-se de novo para o âmbito quantitativo: definir quantos e quais terão acesso a essa formação. É por isso que a deman­da de qualidade para todos, baseada no pressuposto de que todos os seres hu­manos são capazes de aprender, cons­titui a alternativa mais legítima. (57)

 

Capítulo 4 - As novas tecnologias

 

As mudanças no modo de produ­ção estão ligadas à utilização das tecnologias da comunicação e infor­mação. Alguns tendem a crer que são as tecnologias que provocam as mu­danças nas relações sociais, quando, na verdade, a evolução das tecnologias responde às exigências das relações sociais. (59)

As tecnologias da comunicação e da informação respondem tanto às exigên­cias do individualismo como às exigên­cias de integração social. A discussão sobre as relações entre educação e tecnologias abrange os processos de socialização e de aprendizagem. (59/60)

Do ponto de vista da socialização, as tecnologias não devem ser perce­bidas como uma ameaça à democracia e à formação das novas gerações. Do ponto de vista do processo de aprendizagem não devem ser perce­bidas, utopicamente, como a solução para todos os problemas de qualidade e cobertura da educação. (60)

 

Televisão e aprendizagem

 

Os meios de comunicação são acu­sados de ser um dos elementos respon­sáveis pelos desvios morais da infân­cia e da juventude. Mais tempo na frente da televisão acarreta diminui­ção no interesse pela leitura, maiores possibilidades de obesidade e passi­vidade psíquica, índices mais altos de violência, agressividade e medo da violência real. Atribui-se esse proble­ma à lógica puramente comercial da programação. (60/61)

É preciso reconhecer que os fenô­menos mais graves de violência, xe­nofobia e intolerância cultural que ocorrem, não estão ligados a uma ex­posição muito significativa da popu­lação à televisão. (61)

A televisão mudou a natureza da opinião pública, que deixou de base­ar-se na avaliação intelectual das proposições para converter-se numa res­posta intuitiva e emocional à apresen­tação de imagens. A imagem mobili­za particularmente as emoções, os sen­timentos, a afetividade, enquanto a leitura estimula a racionalidade e a reflexão. A publicidade supõe intro­duzir um comportamento não-racional na economia. (62) 
A multiplicação dos canais de tele­visão e a ampliação dos circuitos de distribuição de conhecimentos, valores e padrões culturais pela imagem afetam profundamente os conteúdos do processo de socialização. Na socieda­de contemporânea, na qual os vínculos primários se enfraquecem e a família já não transmite seus conteúdos com a força afetiva com que fazia no passa­do, a socialização secundária começa a encarregar-se da afetividade. (63/64)

A socialização através da imagem e não da língua escrita assume essa função e o faz não tanto através dos conteúdos, mas da forma que utiliza. Desse ponto de vista, a televisão ten­de a reproduzir os mecanismos de so­cialização primária empregados na família e pela Igreja: socializa através de gestos, de climas afetivos, de tona­lidades de voz, e promove crenças, emoções e adesões totais. (64)

Na tradição intelectual do Ocidente a imagem foi sempre subvalorizada em relação ao texto escrito. Uma socializa­ção apoiada maciçamente na imagem im­plica que devemos aprender, e, portanto, ensinar, a defender-nos da manipulação induzida pela imagem. (64)

Agora é necessário que se ensine a usar os meios para evitar que a ima­gem nos manipule, o que abre a porta para toda uma linha de ação educativa futura baseada em formar para o uso crítico dos meios. Mas o que significa isso? Muitos educadores sustentam a hipótese de que é necessário introdu­zir a comunicação como conteúdo de ensino, e, em consequência, enfatizam a necessidade de ensinar como se pro­duz um jornal ou um programa de rá­dio ou de televisão. Conhecer os me­canismos de produção implicaria ad­quirir os elementos para defender-se da manipulação. (64)

Essa posição nos desvia do centro do problema, que passa pelos quadros de referência, tanto culturais como cognitivos, com os quais cada pessoa processa as mensagens que recebe. (64)

O espectador realiza uma série de operações de identificação, reconhe­cimento, diferenciação, que supõe a existência de um núcleo cultural a partir do qual são selecionados e pro­cessados os conteúdos dessas mensa­gens. Quando esse núcleo não está construído ou o está muito debilmente, os riscos de alienação e dependên­cia aumentam. (65)

Os meios tomam como pressupos­to que cada indivíduo já desenvolveu o seu quadro de referência, e a tendência é incrementar a diversidade da oferta para permitir que cada um es­colha o programa que preferir. 

Os meios supõem que os espectadores já têm as categorias e as capacidades de observação, classificação, compara­ção, etc. necessárias para processar e interpretar dados que eles põem à nos­sa disposição. (65)

A evolução dos meios de comuni­cação tende a reproduzir a evolução das outras formas de democratização cul­tural. O interesse em dispor de uma te­levisão de caráter geral, pública e de boa qualidade, é um dos temas de qual­quer política educativa do futuro. Ne­cessitamos de uma estratégia destina­da a reforçar as ações comunicativas através da leitura e da escrita. (65/66)

 

Informática e educação

 

O computador e o telefone, dife­rentemente da televisão, não se baseiam na imagem nem no domínio da afetividade. No computador a inteligência está distribuída de maneira inversa à da televisão: na televisão a inteligência está localizada no centro e os termi­nais são passivos; no computador, a inteligência está nos terminais e o cen­tro é passivo. O telefone destina-se a assegurar a circulação da informação, sem implicar nenhuma concentração de inteligência nem no centro nem nos terminais. (67)

No essencial, não há dúvida de que a utilização dessas tecnologias pode tornar-se um instrumento importante no processo de aprendizagem. A ima­gem, o texto e o som tendem cada vez mais a ser associados - aparatos multimídias. (68)

A educação deve formar as capa­cidades que conformam um compor­tamento inteligente, e, em relação ao acesso às tecnologias, coloca-se o pro­blema do custo: uma educação de boa qualidade não poderá mais ser de bai­xo custo. (68)

As tecnologias são 'máquinas relacionais' que permitem pôr em contato uma quantidade cada vez maior de pessoas, mas também servem para proteger-nos dos outros e da realida­de do exterior. Esse problema implica identificar as demandas sociais capa­zes de estimular o desenvolvimento de tecnologias voltadas para o reforço dos vínculos sociais, e não para sua ruptura. (69)

As tecnologias supõem a liberação do tempo ocupado em tarefas rotinei­ras e contribuem significativamente para aumentar nosso acesso à infor­mação. Mas a informação por si só não acarreta conhecimento, e a mera exis­tência de comunicação não implica a existência de uma comunidade. A construção do conhecimento e da co­munidade é tarefa das pessoas. (69)

É aqui que se situa, precisamente, o papel das novas tecnologias em edu­cação: seu uso deve liberar o tempo que agora é utilizado para transmitir ou comunicar informação, e permitir que ele seja dedicado à construção de conhecimentos e vínculos, sociais e pessoais, mais profundos. (70)

 

Capítulo 5 - A construção da identidade

 

A especificidade da atual situação educacional é que se perdeu a articu­lação entre a socialização primária e a socialização secundária. Não se tra­ta, em consequência, de definir técni­cas de aprendizagem ou projetos curriculares. As definições da atividade educativa não podem ser elabora­das à margem do processo de sociali­zação, sem uma ideia clara de articu­lação com as demais ações e institui­ções socializadoras. No contexto de instabilidade e incerteza, ocorrem fe­nômenos sejam de regressão aos pon­tos de referência tradicionais, sejam de adesão a novos valores. (71)

Assim, o que há de peculiar no atu­al período histórico é a importância que assume a atividade do sujeito na construção de sua identidade. As iden­tidades não são mais impostas total­mente do exterior, mas é preciso cons­truí-las de forma individual. Esse enfoque permite que se explique a pluralidade das identidades. (72)

A existência de sistemas de senti­do (culturas) é cada vez menos sepa­rável das inúmeras ações individuais que as questionam. O indivíduo incor­porava 'sistemas' que existiam de for­ma independente, agora é a pessoa que deve reconstruir o sistema. (72)

Se, por uma lado, a maior partici­pação das pessoas na construção de suas identidades supõe a libertação dos limites impostos por crenças, precon­ceitos, visões pré-formadas da vida, por outro, priva os indivíduos da proteção que a posse de uma identidade fixa outorgava, na qual a responsabilidade pelo desenvolvimento das condutas era determinada de fora. (72/73)

Essa ambiguidade constitui uma das fontes da atual reflexão filosófica e educacional: 'minha sorte não depende senão de mim mesmo'. (73)

Essas mudanças no processo de construção da identidade afetam o papel e as modalidades da atividade educativa, em particular a educação formal, que foi organizada sobre dois pressupostos: que o núcleo básico da socialização já está dado pela famí­lia; que há um modelo cultural domi­nante, hegemônico, que a escola deve transmitir. (73)

Quando a família socializava, a escola podia ocupar-se de ensinar. Agora, a escola começa a ser objeto de novas demandas para as quais não está preparada. Diante dessas mudan­ças na base do processo de socializa­ção, a socialização secundária não permanece inalterada. Há uma espé­cie de secundarização da socialização primária e de primarização da socia­lização secundária. (73/74)

A secundarização da socialização primária expressa-se pelo ingresso cada vez mais precoce em instituições escolares, pelo menor tempo passado com os adultos mais significativos (pais e mães) e pelo contato com os meios de comunicação. A primarização da socialização secundá­ria se caracteriza pela incorporação de maior carga afetiva. (74)

A crise das grandes estruturas e a tendência a operar com unidades pe­quenas, autônomas e flexíveis, supõem o desaparecimento dos mecanis­mos impessoais das grandes burocra­cias, substituídos pelos contatos cara-a-cara, em que a integração, o traba­lho em equipe, a solidariedade cons­tituem elementos-chave. (75)

Isso implica, na atividade profis­sional, a tendência a incluir cada vez mais todas as dimensões da personalidade e não só a competência técni­ca, e, na necessidade de regular pela lei, aspectos que tradicionalmente eram auto-regulados por mecanismos culturais. O intenso personalismo é acompanhado por uma expansão da lei como instrumento de controle social, uma espécie de sucedâneo da autori­dade tradicional. (76)

Numa socialização mais flexível e aberta, a formação ética, dos valo­res e comportamentos básicos, passa a depender de instituições e agentes secundários. Supõe articulações entre o básico e o mutável. (77)

 

A articulação entre o estável e o dinâmico

 

No plano da ética, a construção da identidade supõe a articulação entre um núcleo básico, obrigató­rio, estável e um conjunto mutável de valores e regras de conduta. No plano social, a identidade também se define pela articulação entre o desenvolvimento da individualida­de e o desenvolvimento da sociabi­lidade, entre o obrigatório e o eletivo, entre a continuidade e a transformação. (77)

A crise da modernidade parece ha­ver reduzido ao mínimo o âmbito do estável. A fragilidade dos quadros de referência está associado à insegurança econômica, à perda de confiança, e pode provocar o reforço irracional da deman­da de limites e padrões fixos. (77)

A primeira manifestação desse re­trocesso consiste em pessoas pensa­rem sistematicamente como vítimas, e não como responsáveis por seu pró­prio destino. Expandiu-se de forma significativa o traço cultural de bus­car sempre um responsável pelo que não anda bem em nossa vida. (78)

A segunda manifestação consiste em pensar e atuar não como indiví­duo, mas como membro de um grupo - mulher pensa como mulher e só pode ser representada por mulher. O corolário desse esquema de pensamento é a fobia à mescla. (78)

Assim, tendemos a pensar que, se o objetivo é conseguir o desenvolvi­mento da tolerância, será necessário ser tolerante em todas as situações. Ao contrário, a obtenção de certos resul­tados requer, em determinadas etapas do desenvolvimento, que se passe pela experiência oposta. (78)

Nesse sentido, uma das críticas mais sérias às práticas educativas é que a educação tentou superar o problema da violência eliminando-a como tema das atividades. Nossa cultura tem essa especificidade: estimula o espírito com­petitivo, favorece os sentimentos agres­sivos que excitam a rivalidade, mas transforma em tabu a própria agressividade. Estamos habituados a condenar os atos de violência, porém o que nos faz falta é a promoção de modos satisfatórios de comportamen­to em relação à violência. (78/79)

A ausência total de quadros de re­ferência gera atitudes de criatividade, de tolerância, mas também gera atitudes de anomia, de dissociação e desvinculação social, e a busca de pro­teção na recriação de vínculos tradi­cionais. Reside aqui o primeiro desa­fio para a pedagogia: definir quais são os componentes do núcleo básico da personalidade e da inteligência e as modalidades de sua formação. (79)

 

A articulação entre o próprio e o alheio: identificação da fronteira

 

A construção da identidade impli­ca a identificação de uma fronteira. O ideal de tolerância e compreensão supõe não o desaparecimento das fron­teiras, mas o desaparecimento da con­cepção do 'diferente' como um inimi­go. O debate acerca de um conceito de cidadania alicerçado numa comunida­de de nações (ex.: União Européia) permitiu que se percebesse a importân­cia da 'ruptura cognitiva' que a supe­ração do conceito de cidadania basea­do no Estado-nação implica. (79/80)

Parece oportuno evitar que se caia na demonização do nacionalismo. A integração numa unidade maior só será possível a partir da uma sólida e segura identidade cultural própria. A confian­ça em si mesmo constitui o fundamento inicial de qualquer estratégia de integração e compreensão do 'outro'. (81)

Formação para o exercício res­ponsável da cidadania e redefinição do vínculo entre cidadania e nação são dois aspectos fundamentais da atividade educativa. (81)

 

Individualismo e interesses gerais

 

A crise das identidades e da repre­sentação políticas trouxe consigo a crise do Estado e de todas as formas de expressão dos 'interesses gerais'. No capitalismo tradicional, os interes­ses particulares de cada setor social eram apresentados como interesses gerais, e o êxito definia precisamente o caráter hegemônico de uma deter­minada classe social. (81)

A tensão entre interesses individu­ais e gerais assume novos significa­dos e manifestações. A tendência de dar maior poder de decisão aos cida­dãos responde ao processo de demo­cratização da sociedade, mas esse maior poder implica a existência de um alto nível de responsabilidade in­dividual. O tema da responsabilidade constitui um tema central nas refle­xões sobre o futuro. (82)

A formação ética torna-se, então, um requisito central da formação ci­dadã. A responsabilidade das empre­sas pelo problema do emprego e do meio ambiente, a responsabilidade dos meios de comunicação pela formação das pessoas, a responsabilidade dos educadores pela aprendizagem dos alunos, a responsabilidade dos alunos pelo seu próprio processo de aprendi­zagem. Formar com responsabilidade implica aprender e aceitar que temos uma história comum, valores comuns, um destino comum. Reconhecer o outro como sujeito. (82)


Identidade e capacidade de escolher


A escolha é uma conduta que ocor­re cada vez mais cedo no processo de formação da personalidade. Os jovens são convocados a escolher, a tomar decisões que há pouco eram definidas por autoridades externas: o Estado, a família, a Igreja. (83)

O desenvolvimento da capacidade de escolher constitui, por isso, uma ta­refa importante da educação, o que su­põe uma pedagogia diferente: o traba­lho em equipe, a solidariedade ativa entre os membros do grupo e o desen­volvimento da capacidade de escutar constituem os elementos centrais dessa pedagogia, que devemos desenvolver do ponto de vista teórico e prático. (84)

 

O conflito e a construção da identidade


Estas questões remetem ao papel do conflito, da oposição e da dificul­dade na construção da identidade. A escola trabalhava sobre o universal, sobre o comum e, assim, apresenta­va-se como neutra diante de importantes fatores de diferenciação cultu­ral. Os fatores de diferenciação cultu­ral pertenciam ou à família, ou à con­dição de estrangeiro. (84)

Os padrões entendidos como uni­versais definiam-se por sua neutralida­de em relação aos particularismos. O desafio de romper os particularismos conferia à neutralidade relativa da es­cola um caráter ativo. (84/85) 

A crise do Estado-nação, as dificul­dades cada vez mais sérias para garan­tir mobilidade social e as mudanças culturais associadas ao processo de modernização esgotaram a vigência desse esquema de neutralidade. (85)


Capítulo 6 - A escola total

Quatro ambiguidades se apresen­tam no campo da educação: (87)

• estratégia de dar prioridade à ex­pansão da cobertura da educação pri­mária: para alguns, uma consigna democrática e equitativa, para outros representa que só se quer oferecer aos setores populares a educação de base, monopolizando o acesso ao ensino superior para a elite: (87)
• prioridade conferida à acão pú­blica estatal: para alguns o setor pú­blico é a garantia de equidade na oferta educacional; outras análises, no entan­to, mostram que o Estado não é, por si só, uma garantia de equidade e que, ao contrário, pode exercer sua ação como aparato de dominação; (87) 
• a expansão das novas tecnologias: para alguns é promessa de realização de todas as utopias; para outros, constitui uma ameaça destina­da a reforçar as desigualdades e os controles sobre os cidadãos; (88) 
• os objetivos da educação como atividade destinada à formação inte­gral da personalidade são agora reivindicados não só pelos progressistas, mas também por atores que, no pas­sado, eram identificados como fortes opositores a essas propostas. (88)


O esgotamento do paradigma da modernização


A crise da educação está associa­da ao esgotamento da organização social baseada na 'modernização'. Historicamente, a modernidade este­ve associada quase exclusivamente ao aspecto da racionalidade. (88/89)

A educação constitui, hoje, um dos fatores mais importantes na luta entre racionalidade e subjetividade. Os sen­timentos e as paixões só eram promo­vidos e permitidos nas áreas que cum­priam um forte papel integrador - na­ção, pátria. A socialização escolar es­tava destinada a promover comporta­mentos ajustados às exigências de um sistema baseado em regras impesso­ais e comuns a todos. (89)

A família é a responsável pela che­gada do aluno à escola em condições de educabilidade, tanto materiais como psicológicas. Só sobre essa base a es­cola pode assumir sua tarefa especi­alizada e parcial, ou seja, racional. (89)

As pedagogias que davam ênfase à formação para a liberdade e para a criatividade foram condenadas a desenvolver-se fora dos limites da esco­la pública. (90)

A crise atual é a crise das concep­ções unidimensionais da modernidade: a racionalidade que nega a subjetivi­dade e o valor da liberdade levou ao autoritarismo; a mera subjetividade, sem a racionalidade da ciência, conduz, da mesma forma, ao autoritarismo. O desafio da educação é encontrar a arti­culação entre racionalidade e subjetividade no plano de uma ação social. (91)


Os fins da educação


Uma das características do proces­so de modernização foi a ruptura com a ideia de 'fins últimos', os quais toda ação humana deveria tender a alcan­çar. A educação organizou-se para cumprir sua função de integração so­cial. A carência de 'fins últimos' põe em crise a crença de que temos algo a transmitir às novas gerações. (91/92)

Devemos, então, discutir o senti­do da atividade educativa, pois a au­sência de sentido leva a propostas que representam um retorno à ideia de 'fins últimos e sagrados', que não se discutem e são impostos às pessoas, ou a propostas neoliberais, que se tra­duzem no desenvolvimento de um in­dividualismo anti-social, na busca de interesses individuais independente­mente de suas consequências para o equilíbrio social. (93)


A escola total


escola definia-se por seu caráter de instituição de socialização se­cundária: pressupunha que o núcleo básico da personalidade e da incorpo­ração à sociedade já estava adquirido, e sua função concentrava-se na pre­paração para a integração social. Esse modelo esgotou suas possibilidades, e a função da escola deve ser redefinida. (93)

As mudanças mais importantes sus­citadas pelas novas demandas à edu­cação: que esta incorpore, de forma sis­temática, a tarefa de formação da per­sonalidade, além do desenvolvimento cognitivo; que rompa com a neutrali­dade em relação às diferenças (uma tentativa de suprimir as desigualdades ou a tentativa de uniformizar e enqua­drar todos num modelo cultural domi­nante e/ou legitimar as desigualdades através do diferencial de sucesso no rendimento educacional). (94/95)

Sabemos que, para que se supri­mam as desigualdades, é preciso le­var em conta as diferenças, e, além disso, o desenvolvimento da persona­lidade supõe que se ensine a assumir a escolha das identidades de gênero, religião e cultura. A tarefa de formação da personalidade afeta todas as dimensões da instituição escolar: cur­rículo, critérios de avaliação, corpo docente, etc. (95)

Assumir a formação da personali­dade implica que a escola não poderá mais deixar de lado certos temas, mas deverá assumi-los, promovendo seu conhecimento e sua discussão. O de­bate sobre a compreensão do fenôme­no religioso e suas diferentes expres­sões, por exemplo, é fundamental na formação de uma cultura cidadã. (96)

É muito importante, ainda, refor­çar a formação ética, na qual valores como responsabilidade, tolerância, justiça e solidariedade constituem o corpo central da formação do cidadão, e que se rechacem tanto a negação da subjetividade, como a ideia de um modelo único de pessoa ao qual todos devemos tender. (96)

É preciso promover o vínculo en­tre os diferentes, promover a discus­são, o diálogo e a troca. Definir formas de promover o 'desejo de saber' e de formar os quadros de referência para processar a informação disponí­vel que circula na sociedade. (96/97)

A função de integração social de­verá ser redefinida a partir da prepa­ração para o trabalho em equipe, o exercício da solidariedade, o reconhe­cimento e o respeito às diferenças. Essa formação exige, também, uma articulação entre o grupo e o indiví­duo. Ser membro de uma equipe im­plica dispor de algo para contribuir. A excelência individual não é contradi­tória com o trabalho coletivo. (97)

As novas tecnologias permitem que se libere o tempo aplicado a tare­fas rotineiras, para liberar o professor da tarefa de fornecer informações ou de preencher formulários administra­tivos, para permitir que ele reforce a atenção personalizada, conforme o rit­mo de cada aluno, e para o trabalho em equipe. Formar as capacidades de análise e síntese, e de criatividade. A base do novo trabalho é a motivação para o esforço que o processo de aprendizagem requer. (97/98)

O simplismo do entretenimento e a ausência de perspectivas de traba­lho são fatores muito poderosos de desmotivação para o esforço de apren­dizagem. A promoção de estratégias para o tempo de lazer baseadas em atividades de grupo constitui o ponto de partida para tornar a distração um fator educativo. (99)

A escola deve assumir a tarefa de promover estratégias baseadas na supe­ração da passividade e do individualis­mo. O desafio é promover condutas nas quais a equipe, e não o indivíduo isola­do, seja o fator de êxito, e o triunfo não signifique a eliminação dos outros, sem os quais não existe a possibilidade de continuar competindo. (99)


Escola e sociedade


O modelo de desenvolvimento ca­pitalista implica alto grau de dissociação entre as capacidades para a atividade produtiva e as capacida­des requeridas pelo desenvolvimento da personalidade. (99/100)

Durante as últimas décadas a expan­são educacional produziu o seguinte fe­nômeno: os egressos do ensino superi­or começaram a ter acesso a postos tra­dicionalmente ocupados por pessoas formadas no ensino médio; estas, por sua vez, ocuparam os postos para os quais antes só se exigia educação básica; e os que só possuem educação bási­ca tendem a ser os candidatos mais cer­tos ao desemprego. Não obstante, já se percebe que o desemprego afeta tam­bém os mais preparados. (100)

Um dos desafios futuros é a articu­lação de uma proposta baseada na desvinculação entre educação e mobili­dade social. A dificuldade é que ela per­de um dos aspectos mais dinamizadores da expansão educacional. (101)

Outro desafio é promover o prestí­gio e a importância da formação básica, que implica romper com uma das diretrizes mais arraigadas no funcionamen­to de nossos sistemas educacionais: su­por que quanto mais básico é o conteú­do, menores são os recursos necessári­os. Os professores tendem a abandonar os postos dos primeiros graus. Os re­cursos econômicos também são distri­buídos da mesma maneira. Inverter essa tendência será uma das tarefas mais im­portantes do futuro. (102)

As tendências demográficas indi­cam uma progressiva diminuição da demanda de acesso à educação bási­ca, acompanhada de maiores deman­das de educação permanente. Essa mudança implicará uma reformulação do conceito de obrigatoriedade do en­sino. (102)

 

Capítulo 7 - Sistema ou instituição


A tendência à personalização dos serviços e a ênfase no desenvolvimen­to integral da personalidade colocam exigências incompatíveis com algu­mas das diretrizes dos modelos tradi­cionais de organização e gestão das atividades educativas. (103)

O Construtivismo ofereceu os fun­damentos para a proposta de atribuir aos estabelecimentos e aos próprios docentes boa parte das decisões em ter­mos curriculares, permitindo um pro­cesso de aprendizagem baseado na ex­periência acumulada tanto pelos alu­nos como pela equipe docente. (103)

A tendência agora é transformar as grandes organizações burocráticas em redes planas de instituições menores, destinadas a melhorar a eficiência da pro­dução e a ajustar-se às necessidades dos clientes, e combater os problemas gera­dos pelos sistemas centralizados: inefi­ciência, pouca responsabilidade pelos resultados, isolamento, corporativismo, rigidez e imobilismo. (103) Isso pressupõe passar de um siste­ma para uma instituição. (104)


Desenho institucional e justiça


Organizar a atividade educativa em função de um sistema significa, da perspectiva conservadora, a ideia de integração, de incorporação de todos a um sistema hierarquizado e aos va­lores desse sistema; da perspectiva democrática, que o sistema garante a equidade, a igualdade em termos da utilização do principal mecanismo de ascensão social. (104)

A educação, de acordo com esse pres­suposto, foi organizada com base na ig­norância de uma série de característi­cas que definem a condição e as possibi­lidades de cada um em relação à apren­dizagem, ao desenvolvimento da inteli­gência e das capacidades pessoais.

A ignorância desses fatores foi entendida como uma condição da jus­tiça. Tratar todos da mesma maneira foi o princípio básico. (105)

A avaliação de resultados de aprendizagem fez emergir a reivindi­cação das diferenças, que resiste à ideia de tratamento homogêneo, e per­mitiu tratar cada um segundo suas necessidades. O conhecimento da 'especificidade' gera um novo princípio de vida social no qual a tolerância substitui a solidariedade e a imparci­alidade substitui a igualdade e a equi­dade. A transparência gera, portanto, maior instabilidade. (105/106)

É imprescindível dotar de maior autonomia os estabelecimentos, e adequá-los a traços particulares. Mas não se pode deixar que a adequação às diferenças torne-se uma adequação à desigualdade e se rompa a coesão social mínima indispensável à vida em comum. (106)


O debate sobre a educação privada


De uma perspectiva neoliberal, a autonomia dos estabelecimentos e a introdução de uma lógica de funcionamento baseada nas instituições es­tão associadas à ideia de desregular o sistema educacional, atribuindo mai­or espaço à atividade privada. (107)

A controvérsia entre ensino públi­co e ensino privado girou em torno de um eixo ideológico: ao Estado competia, com outras instituições, o con­trole da socialização da população. Atualmente, a controvérsia gira em torno das demandas pelo direito à edu­cação, e aparecem argumentos de tipo financeiro-administrativo.

Em síntese, os principais argumentos para justifi­car a necessidade de expandir o ensi­no privado são: (107) 
a) a pressão de determinados grupos para manter seus padrões culturais; (107) 
b) o desafio de melhorar a qualidade da educação em contextos de restri­ção orçamentária; (108) 
c) a necessidade de dinamizar o fun­cionamento das instituições educaci­onais; (108) 
d) o maior interesse privado pela educação, em virtude da revalorização do conhecimento como fator de produção. (108) 
Há ideias que permitem clarifi­car o debate. A primeira é que não há uma associação unívoca entre privatização da educação, moderni­zação e desenvolvimento social. A segunda é que não há uma associa­ção unívoca entre privatização e desregulamentação do funciona­mento das instituições educacio­nais. A terceira é que não há uma associação unívoca entre privatização e melhores resultados de aprendizagem. (108)

 

Público/privado e desenvolvi­mento social


No que diz respeito ao ensino pré-primário, o setor privado atende mais da metade das matrículas. Nos últimos anos, no entanto, houve uma expan­são significativa da matrícula públi­ca, particularmente para setores tra­dicionalmente excluídos. (108)

A análise do ensino primário indi­ca que o setor privado tem absorvido entre 10% e 15% das matrículas. No caso do ensino secundário, nos países em desenvolvimento, alcançam qua­se 30%, com declínio nos últimos anos. (109) 

Em termos gerais há dois padrões de desenvolvimento:

• um, que se expressa numa con­centração do esforço público no ensi­no primário, deixando um papel mais ativo para a atividade privada no en­sino médio e superior; e

• outro, em que o setor privado as­sume maiores cotas no ensino primá­rio e um papel menos ativo nos níveis posteriores.

Esses padrões refletem estruturas distintas de demanda educacional e, o que é mais importante, diferentes modelos de distribuição social dos re­cursos públicos. (109)

O Japão representa um modelo 'público/elitista': forte atuação do Estado na garantia da educação bási­ca para toda a população e ensino su­perior de alta qualidade. O setor pri­vado é muito importante no nível secundário. (110)

A experiência japonesa indica que a redução das exigências acadêmicas para permitir o ingresso massivo nas universidades privadas não gera mai­or equidade, mas, ao contrário, con­fere à educação pública a possibilida­de de tornar-se um segmento de alta qualidade e prestígio. (110)

Outro exemplo é o Brasil: os da­dos indicam que, embora os esforços públicos sejam maiores na educação básica que na superior, existe uma porcentagem importante de matrícula primária privada. No entanto, as uni­versidades públicas, como no Japão, são as que gozam de maior prestígio e nível de qualidade. (110)

Os filhos das famílias de classe alta frequentam escolas privadas primárias e secundárias de boa qualidade, onde obtêm o preparo que lhes per­mite ser aprovados nos exames de in­gresso às universidades públicas gratuitas. Os filhos das famílias de pou­cos recursos, ao contrário, recebem uma educação primária e secundária pública, de baixa qualidade, que não os habilita nas provas de acesso à uni­versidade pública e, portanto, têm de pagar por uma educação superior, ge­ralmente de baixa qualidade. (110/111)

A grande diferença entre os dois casos reside nos níveis de equidade existentes na base do sistema educativo. Os mesmos resultados no nível de ensino superior têm significa­dos muito diferentes quando se analisa o conjunto do sistema educativo. (111)


Escola privada e controle público


Existe uma diversidade de formas de regulamentação pública da atividade educativa privada. Na Holanda o Estado oferece subsídio e mantém for­tes regulamentações em aspectos-chave: currículo, sistema nacional de exa­mes ao final da escola elementar e da escola secundária, e controle dos cri­térios de seleção de estudantes. (112) 
O Estado limita a possibilidade de pagamentos adicionais; paga os salári­os dos professores - do setor público e privado - mas não permite complementações salariais; fornece os edifícios - às instituições públicas e privadas - através dos municípios, mas com reembolso pelo governo central. O resultado é que as escolas privadas não recrutam alunos de origens sociais dis­tintas dos das escolas públicas. (112)


Privatização e qualidade da educação


Em geral, o ensino privado recru­ta seu alunado em setores médios e altos, criando dessa forma um fenômeno circular: os alunos dotados de melhores antecedentes familiares re­cebem uma oferta escolar caracteriza­da pela disponibilidade de equipamen­to e de pessoal adequado, e obtêm re­sultados mais altos que os produzidos pela escola pública. (112)

Há casos em que a oferta privada estendeu-se aos setores populares com base em subsídios estatais. Argumen­ta-se que ficaria mais barato financiar um estabelecimento privado que ofereça educação gratuita, do que finan­ciar uma escola pública. (112)


A identidade institucional como explicação para os bons resultados


Os dados indicam que a explica­ção de bons resultados em aprendiza­gem está muito mais na dinâmica institucional, do que no caráter pú­blico ou privado. Os melhores rendi­mentos estão associados à possibilidade de elaborar um projeto educativo do estabelecimento escolar, definido por objetivos claros, metodologias de trabalho compartilhadas, espírito de equipe e responsabilidade diante dos resultados. (114)

Políticas de fórmulas mistas, que concentrem o gasto educativo nas populações com maiores carências, revelam-se muito mais equitativas que um serviço público-estatal que trate de forma homogênea populações di­ferentes. A dicotomia entre eficiência e dinamismo como patrimônio do se­tor privado e rigidez e ineficiência como patrimônio do setor público não é mais sustentável. (115)

A autonomia dos estabelecimentos constitui uma via promissora para nos aproximarmos desses objetivos, desde que sejam definidos mecanismos de articulação que evitem a atomização e garantam uma efetiva coesão. (115)

O desafio consiste em promover a coesão entre as instituições educaci­onais a partir de elementos comuns, presentes no projeto de cada institui­ção. Para isso, o conceito que pode permitir uma nova articulação entre a autonomia dos estabelecimentos e a necessária coesão entre eles é o con­ceito de rede. (115)


Redes educativas


É preciso distinguir duas dimen­sões que aludem às diferenças que precisam ser superadas para que uma rede funcione: adimensão tecnológica e a dimensão social. (115)

A dimensão tecnológica compre­ende as infraestruturas materiais que constituem o suporte da rede e asseguram a comunicação e os fluxos de informação. A dimensão social com­preende tanto o sistema de relações entre os indivíduos, ligados ou vincu­lados por algum interesse comum, como a cultura, que regula de forma não-explícita os contatos entre os membros da rede. (115/116)

Participar de uma rede implica entrar em contato (pela voz, pelo ges­to, pela escrita, etc.), e ter capacida­de de entender-se, em torno de um projeto comum. Mas a característica fundamental é que uma rede pode ser mobilizada pelas iniciativas de cada um dos participantes e usuários. (116) A rede é o tipo de dinâmica que permite desenvolver o estímulo ao contato e ao intercâmbio entre os es­tabelecimentos, que compartilham estratégias comuns, que se associam para beneficiar-se de economias de escala, que partilham informações, análises e recursos, etc. O desafio é tornar essa prática uma prática legí­tima e estimulada. (118)

O papel do Estado consiste em defi­nir os objetivos, avaliar os resultados e intervir onde eles não forem satisfatórios. Em países em desenvolvi­mento, algumas experiências de municipalização da oferta educacional evidenciam que as características do poder local podem ser um fator de rigi­dez tão forte quanto à oferta centraliza­da. Assim, o dilema que as políticas de descentralização e de atribuição de maior autonomia às instituições enfren­tam é sua operacionalização. (118/119)

Convém ressaltar que a autonomia institucional implica autonomia profis­sional por parte do corpo docente. (119)

 

Capítulo 8 - Os docentes: profis­sionais, técnicos ou militantes?


As modificações que a atividade educativa está sofrendo afetam diretamente o corpo docente. Na maior par­te dos casos, são percebidas mais como ameaça do que como novas oportuni­dades. Provocam sentimentos de inse­gurança, de desconfiança. (121)

Esse comportamento tem raízes profundas. É preciso reconhecer que nas últimas décadas ocorreu um processo claro de deterioração das con­dições de trabalho e de profissionalismo dos docentes. Por outro lado, os processos de descentralização foram motivados pelo desejo de romper a unidade sin­dical ou diminuir os gastos em educa­ção, e não de melhorar a qualidade, sua eficiência ou a democratização do ensino. (121/122)


Profissionalizar ou desprofissionalizar?


O novo papel da educação e do conhecimento pressupõe a redefinição do papel dos educadores, pois implica níveis mais altos de profissionalização. Mas pode impli­car, também, na desprofissionalização da atividade educativa. (122) 

É preciso distinguir entre a melhoria das condições de trabalho e o desenvolvimento da 'capacidade profissional', isto é, das aptidões ne­cessárias ao desenvolvimento da ati­vidade profissional. Os estudos revelam que as melhorias introduzidas no processo de formação dos professo­res a fim de favorecer o 'status' não causaram um impacto significativo; e a melhoria da capacidade profissional não conseguiu neutralizar os efeitos de outras variáveis, tais como a ori­gem social dos docentes e a alta pro­porção de mulheres. (123)

Muitos sustentam que a educação é uma atividade na qual a profissionalização não seria possível nem conveniente, visto que tem como objetivo determinar mudanças nas pessoas, e as decisões que o docente tem de assumir baseiam-se em opções éticas, em determinações culturais, em avaliações subjetivas e em teorias com escassa corroboração empírica, que não fazem utilização sistemática de um aparato teórico. (124)


Equipe docente versus docentes isolados


Um dos traços mais significativos da atividade profissional dos docen­tes é seu caráter individual. O esque­ma tradicional não estimula a discus­são nem a co-responsabilização pelos resultados e obriga o docente a enfren­tar sozinho a solução dos problemas que sua atividade coloca. Aqui reside um dos obstáculos mais importantes para o desenvolvimento de uma cul­tura técnica comum. (124)

A autonomia dos estabelecimen­tos permite a definição de um projeto pedagógico, que exige trabalho em equipe e acúmulo de experiências; os quais, por sua vez, permitem enfrentar com tranquilidade os diferentes aspectos do trabalho: ensino, avalia­ção, pesquisa, etc., além de ter impli­cações na gestão e nas condições de trabalho. (125)


Promover a inovação


Além do trabalho individual iso­lado, a cultura profissional do docen­te caracteriza-se por um forte ceticismo diante das inovações. Mas as aná­lises mostram que o êxito das inova­ções depende do compromisso e da participação dos docentes. (125)

A inovação requer, também, lu­gares de encontro, formação e pes­quisa para os professores e diretores, onde seja possível discutir os proble­mas de maneira menos corporativa. Requer, ainda, a instalação de uma rede que permita que interajam, par­tilhem experiências, e que os estimu­le e apoie. (126)


Prioridade aos lugares onde se dá a formação básica


Só com uma boa formação básica será possível desenvolver as capaci­dades requeridas para a atividade pro­dutiva e cidadã. (126)

Nesse contexto as maiores deman­das de profissionalismo aparecerão nos âmbitos em que a tarefa educativa foi mais desprofissionalizada: a for­mação básica. (126/127)

A formação básica é a que deman­da níveis mais altos de profissionalização pedagógica. Ensi­nar a ler e escrever implica um conhe­cimento técnico muito específico. Colocar os melhores docentes nesses lugares deve ser uma das demandas democráticas mais importantes. (127)


Novos docentes


A diversificação dos lugares de produção de conhecimentos e a neces­sidade da educação permanente provocaram uma expansão, no âmbito da formação e nos tipos de educadores. Num contexto de evolução acelerada do conhecimento, só as pessoas vin­culadas às atividades nas quais se pro­duz e se utiliza o conhecimento serão capazes de dominá-lo de modo a po­der transmiti-lo. (127)

Em consequência, teremos os do­centes básicos, encarregados da for­mação do núcleo 'duro' da estrutura cognitiva e pessoal, e os 
docentes especializados, responsáveis pela for­mação em campos sujeitos a revisão e renovação permanentes. A articu­lação entre ambos será absolutamen­te necessária. (128)

A reação das corporações de do­centes a qualquer iniciativa que ten­da a romper o monopólio da função docente, se torna contraproducente se a dissociação entre os que têm o conhecimento e a informação e os que são responsáveis pelo ensino au­mentar. Uma política de incorpora­ção dos 'novos docentes' pode ser um fator de enriquecimento político e profissional. (128)


Docentes e militantes


Haverá um aumento significativo das exigências de compromisso pes­soal do docente com os objetivos da tarefa educativa. A adesão a um pro­jeto de equipe e a tarefa de formação da personalidade dos alunos implicam assumir de forma ativa os valores da democracia. (128)

Uma das dificuldades mais impor­tantes para avaliar o trabalho docen­te, e orientar sua formação, é o pressuposto de que deve possuir as quali­dades que vai formar nos alunos, ou, no mínimo, ter uma atitude que esti­mule essas qualidades. Nesse aspec­to, é preciso destacar a importância do trabalho de equipe. (129)

A recuperação da paixão, do entu­siasmo, é uma exigência, assim como a convicção de que todos podem aprender. As pesquisas mostram que as expectativas do docente cumprem um papel decisivo para o êxito dos alunos. (129/130)


Capítulo 9 - A reforma educacional


A crise não é uma crise parcial, e as mudanças não podem ser reduzi­das a meros ajustes. As estratégias de mudança radical, originadas fora das instituições, fracassam porque provo­cam fortes resistências dos atores in­ternos. As estratégias baseadas na ca­pacidade interna são muito lentas, e acabam cedendo às pressões para satisfazer as demandas corporativas. As metodologias das reformas e a capa­cidade para implementá-las de forma efetiva são tão importantes como os conteúdos das propostas. (131/132)


O acordo educativo como base da reforma


Uma estratégia de transformação por consenso, por contrato entre os diferentes atores sociais, permite, por um lado, superar a concepção de que a educação é responsabilidade de um único setor e, por outro, organizar o nível de continuidade que a aplicação de estratégias, de médio e longo pra­zo, exige. (133) 

À medida que o conhecimento e as capacidades das pessoas são re­conhecidos como fundamentais para o crescimento econômico e a demo­cracia, a definição da participação de cada setor passa a ser aspecto central. (133)

O consenso pressupõe o reconhe­cimento do outro e a negociação. Não elimina o conflito, não signifi­ca uniformidade. Mas a busca de conciliação, mediante o diálogo e os acordos para a ação, cria um meca­nismo pelo qual esses conflitos são resolvidos. (134)

São responsabilidades do Estado a determinação de objetivos e priori­dades; a avaliação dos resultados; o respeito às regras do jogo; a criação e implementação dos mecanismos que permitam compensar as diferenças. Essa ação requer a disponibilidade de diagnósticos precisos, de um alto grau de informação, e mecanismos de ava­liação que permitam efetuar mudan­ças antes que certos resultados se con­solidem. (135/136)


Reforma ou inovação institucional?


Promover acordos para estratégi­as de longo prazo pode parecer con­traditório com uma situação que muda constante e rapidamente. No entanto, os índices mais altos de dinamismo ocorrem em sistemas que mantêm um alto grau de estabilidade em determi­nados núcleos básicos de sua estrutu­ra. (136)

Uma mudança educacional baseada nas inovações implica que se pas­se de um enfoque de mudança centrado na oferta para um enfoque baseado no papel ativo da demanda. Nesse sentido, oferecer mais e melho­res informações aos usuários do sis­tema constitui a linha de ação mais promissora. (137)


As estratégias de mudança educa­cional têm um caráter sistêmico


As mudanças dependem da interação de múltiplos fatores, que devem atuar de forma sistêmica: ações de capacitação, reforma dos conteúdos, da estrutura salarial, etc. O problema central é estabelecer a sequência e a medida em que deve mudar cada um dos componentes do sistema. (138)

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