04/10/2013
As formigas - Lygia Fagundes Telles
As formigas
Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos
imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes,
um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço
da prima.
- É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma
pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes,
com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone
que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da
graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas
recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas
encardidas. Acendeu um charutinho.
- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha
direção.
- Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra
coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A
saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de
palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os
restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de
tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês
também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui,
estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se: - Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita
escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser
menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que
entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha
pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o
assoa(ho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha
prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de
corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? - Ele disse que eram de
adulto. De um anão.
- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que
maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela.
Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. - Tão
perfeito, todos os dentinhos!
- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O
banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo.
Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa
posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou
coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada
final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus
chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a
blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na
parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia
em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira,
desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do
teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. C
quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa
de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro
do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão
reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se
amontoam ovos numa caixa.
- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou
trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha
sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois
fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho,
voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho
para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio
entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou
as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um
anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão,
ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas,
está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha
espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela
parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como
um exército em marcha exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só
de ida - estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho.
Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool.
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram,
formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um
fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar
aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os
sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme,
um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o
cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
- Esquisito. Muito esquisito. - O quê?
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei
ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com
uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o
caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a
mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma
fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou
perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como
uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os
exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do
único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou
veementemente. Travei a campanhia. Minha prima dormia com a cabeça
coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de
cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e
então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha
desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército
massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas
no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no
quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão
baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando
acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de
deitar você juntou tudo... Mas, então, quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro,
mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a
atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que
achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o
quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo
tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele
eu marcava encontro com dois namora dos ao mesmo tempo. E no mesmo
lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que
chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco
de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a
superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha
cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de
novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até
o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá
dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada!
Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto
tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de
formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o
caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase
me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo
mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco
eles estão... Estão se organizando.
- Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu
cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a
coluna vertebral quejá está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada
ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais
um pouco e... Venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia
sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o
chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça
entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria
por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando
saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas
desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim
animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me
lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o
bule fumegando no fogareiro.
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. O assoalho ainda
estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a
pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu
nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a
lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me
agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei
para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E
vesga.
- Voltaram - ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí?
Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua
voz.
- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a
trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o
que eu esperava...
- O que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está
inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num
instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes
que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os
sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos
arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto,
deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a
janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
In “Seminário dos Ratos”
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