27/08/2012

Poesia Matemática

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Millôr Fernandes

 


01/08/2012

METONÍMIA, OU A VINGANÇA DO ENGANADO - Rachel de Queiróz








(Drama em três quadros)
Rachel de Queiroz



Metonímia – a palavra me ficou na memória desde o ano de 1930, quando publiquei o meu livro de estreia, aquele  romance de seca chamado O Quinze. Um crítico, examinando minha obrinha, censurava-me porque, em certo trecho da história eu falava que o galã saíra a andar "com o peito entreaberto na blusa". "Que disparate é esse?", indagava o sensato homem. "Deve-se dizer é: blusa entreaberta no peito". Aceitei a correção com humildade e acanhamento, mas aí o meu ilustre professor de Latim, Dr. Matos Peixoto, acudiu em meu consolo. Que estava direito como eu escrevera; que na minha frase eu utilizara uma figura de retórica, a chamada metonímia – tropo que consiste em transladar a palavra do seu sentido natural da causa para o efeito, ou do continente para o conteúdo. E citava o exemplo clássico: "taça espumante" – continente pelo conteúdo, pois não é a taça que espuma e sim o vinho. Assim sendo, "peito entreaberto" estava certo, era um simples emprego de metonímia. E juntos, numa nota de jornal, meu mestre e eu silenciamos o crítico. Não sei se o zoilo aprendeu a lição. Eu é que a não esqueci mais. Volta e meia  lá aplico a metonímia – acho mesmo que é ela a minha única ligação com a velha retórica.
Faz pouco tempo, por exemplo, dei com uma ocorrência de metonímia prática: certa senhora nossa conhecida, há anos hospedada numa pensão, saiu de repente da casa e passou a ser inimiga mortal da senhoria. Indagada da gente por que aquela inimizade repentina, quando todos  sabíamos que a dona da pensão era boa alma, lhe dava injeções, lhe emprestava a bolsa de água quente e a acudia nos seus acessos cardíacos, a ofendida explicou:
- O que eu não perdoo a ela é o telefone. Todo dia o telefone da copa me chamava – eu ia ver, era trote.
- Mas não era ela que dava trote!
- Não. Mas de quem era o telefone?
Agora sei de outro caso de metonímia aplicada, que ainda é mais importante, pois se trata de caso de crime. Relação de causa e efeito, ou mesmo culpar o continente pelo conteúdo – qualquer dos dois está certo.
Assim  pois aconteceu numa cidade do interior – não conto onde, para não dar lugar a maledicência. Diga o pecado mas  não diga o pecador.
Pois nessa cidade do interior havia um homem; não era velho, mas pior que velho, porque era gasto. Em moço sofrera de beribéri, o que lhe arruinou para sempre o futuro. Tinha as pernas fracas, o peito cansado e asmático, a cor terrosa, o olhar vidrado de doente crônico. Contudo era homem de algumas posses, casa própria com loja contígua, onde instalara o armazém; vivesse ele no Ceará, o armazém se chamaria bodega, em Pernambuco venda, no Pará mercearia, em São Paulo empório. E já que eu não quero designar o local do crime, qualquer nome desses serve. Bodega ou empório era comércio, e quem tem comércio tem dinheiro; de jeito que, apesar de tão mal-ajambrado, o nosso homem casou. Justiça se faça que não tentasse a Deus com nenhuma beldade: procurou moça pobre, magrinha, operária numa oficina de roupas de homem. Diziam até que ela tinha cara de tísica. Mas não contava o prezado amigo com os efeitos da boa nutrição no metabolismo feminino. Sei é que a cara de tísica, livrando-se das oito horas de trabalho à mesa de costura, passando a comer bem, em casa sua, a boa carne fresca, o seu bom tutu, a sua salada de pepino, os doces de lata, as doces laranja da serra que o marido comprava aos centos para a freguesia, mudou como se fosse encantada. Começou a botar corpo, a aumentar as polegadas nos lugares certos – parece até que estava crescendo. E as cores do rosto, então! Ainda mais que, com a afluência de dinheiro, deu para se vestir bem, se pintar, ondular o cabelo, usar engenho e arte a fim de aumentar os dotes naturais, pois não sei se contei que, de cara mesmo, ela não tinha nada  de feia.
E assim bela e assim vestida e assim pintada e formosa, começou a lhe pesar o marido enfermiço, envelhecido antes do tempo. Que, mal fechava o armazém, tomava a janta de leite (tinha cisma com carne), pegava o jornal, sentava na cadeira-preguiçosa até a hora de ir para a cama. Não queria saber de cinema, nem de futebol, nem sequer de rádio. Até mesmo por amor não se interessava grande coisa, que aquele corpo franzino, amarelo, não era de pedir amores. Só a convivência morna, insossa, ité, como se diz em São Paulo.
E foi aí que o destino caiu dos seus cuidados e fez a primeira intervenção: suscitou um sargento.

 





  



Quadro II

Claro, não era justo que a jovem esposa depois de recondicionada graças às finanças do marido tirasse vantagens dessa nova situação de mulher bonita, em prejuízo do supradito marido. Não era justo, este mundo vive de injustiças. E o sargento – quer fosse do Exercito, da Aeronáutica, da Marinha ou dos fuzileiros (não digo ao certo, firme no meu propósito de evitar identificação).

-, o sargento era simpático, era musculoso, era jovem, era formidável marcial dentro farda ao peito, o andar elástico, a fala ríspida habituada ao comando.

            Aconteceu que, um belo dia, servia a dama ao balcão (segundo era costume do casal, enquanto o marido almoçava), quando sobreveio o sargento. O que houve o que não houve? Hoje é difícil reconstituir. Parece que ele pediu um maço de cigarros. Depois queria um vermute. Por fim pediu licença para escutar o noticiário esportivo no radio que tocava perto do balcão. Seria pretexto para se demorar ali, além disso, ele não pediu mais olhares. Ou no Máximo disse alguma palavra, mas murmurada tão baixo  que a não ouviu o resto da freguesia presente, sempre atenta a mexericos.

            Com três almoços o namoro pegara firme. Seguindo-se aos almoços uma gripe do marido, os dois caminharam muito além  de namoro. Como se encontravam, onde e a que horas, não se apurou. Basta que se diga que eles se amaram de amor proibido, como Tristão e Isolda, como Paolo e Francesa.




           



E o destino, que não gosta de amores ilegais e costuma castigá-los com maus fados, fez a sua segunda intervenção: suscitou a transferência do sargento.

***

            Diz que só quem ama conhece a dor da separação.

Os bonitos olhos da moça incharam de tanto choro. O apetite diminuiu. Já lhe transparecia, por sob o rouge da face, a antiga cara de tísica. E há de ter sido esse desgosto, assim alardeado com pranto de fastio, que acabou por despertar as suspeitas do marido, não acordadas quando o amor florescia e tudo eram  rosas.

            Passou o bodegueiro a vigiar a esposa; a lhe examinar os silêncios; a lhe escutar os suspiros e os murmúrios durante o sono. Deu para fazer pesquisas e acabou descobrindo um postal e um livro com o nome de homem escrito em ambos - e com a mesma letra. Descobriu um escudo da corporação do sargento - o que provava que o objeto de suspiros, silêncios e murmúrios, alem de homem era soldado. E tantas descobertas pequenas levaram-no afinal à maior de todas, que era descobrir que o traiam. Porque descobrira as cartas, as cartas de amor que vinham com carimbo distante, por via aérea, assinadas com aquele nome fatal.

            Durante cinco meses o pobre revolveu dentro do seu magro peito doente o punhal venenoso do ciúme. Como menino que descobre um ninho de pássaro e fica diariamente a vigiar escondido o numero de ovos que aumenta, e depois os progressos do choco, assim conseguira o marido uma chave falsa para o cofre de guardados da mulher: era uma caixa de madeira do Paraná, com um pinheirinho recortado na tampa, que ele mesmo lhe dera durante a lua de mel, dizendo rindo:

"Está aqui, para você guardar os seus segredos...".

            E a ingrata obedecera ao pé da letra.

            Todos os dias, naquela hora fatal do almoço , quando a mulher o substituía no balcão, ele nem cuidava de comer. Era só correr ao quarto, abrir o camiseiro, tirar a caixa de sob o monte de roupa branca, puxar do bolso a chavinha falsa e abrir ansiosamente a carta nova. E quando não havia carta nova, reler a velha, ou antes, uma das antigas, uma datada de 21 de agosto, tão cheia de recordações realísticas, que até parecia filme Francês. Depois de ler guardava tudo, corria até a cozinha, engolia depressa uma colher de caldo, roia um pedaço de pão – seria impossível comer direito com aquele amor dos dois ladrões atravessado na garganta.

            Até que um dia houve provocação maior...



                                                                      




                                                                  

                                                                 Quadro III                   

E um dia, como dizíamos na semana passada, houve provocação maior ou o coração do homem enganado saturou-se de ódio e ciúme até o ponto de não poder contar mais nada. Isso não se explicou. O que se sabe é que ele retirou da gaveta do balcão um revólver que lá guardava há anos, e que fora empenhado por um devedor desaparecido. Junto do revólver estava a caixa de balas. O nosso amigo carregou a arma; e numa manhã de sol claro, eram dez em ponto, quando o armazém estava cheio de fregueses, viu-se que o bodegueiro apurava o ouvido, pedia licença aos presentes e transpunha a porta de comunicação da loja com a sua casa.

Daí a pouco se escutou um ruído de altercação, um grito de mulher e três tiros cortaram o ar, em explosões secas.

A freguesia alarmada correu, rodeou a esquina até à porta da frente da casa da moradia. Lá estava armada a tragédia: a mulher na calçada, de joelhos, aos gritos, o marido de revólver na mão, muito trêmulo, tentando soerguê-la, e, atravessado na porta, caído de borco, com o corpo para dentro da sala, um homem. Na posição em que estava não se lhe via cara nem torso, só as botinas pretas e as pernas, vestidas em calça cáqui.

E foi o próprio marido quem falou primeiro. Ergueu os olhos para o grupo apavorado, deu com a vista no freguês predileto, andou um passo, tapou com o próprio corpo a porta onde jazia o morto e pediu:

- Pode ir chamar a Policia.



                                                         ***

Na Policia explicou que matara o homem porque era um marido enganado.

O delegado comentou:

- É raro. Em geral vocês matam as mulheres, que são mais fracas.

Mas o marido protestou, magoado:

- Não, eu não seria capaz de matar minha mulher. Ela é tudo que eu tenho no mundo, bonita, delicada, cuidadosa. Me  ajuda no armazém, entende de contas, faz as cartas para os atacadistas. Só ela pode fazer a minha comida – eu só como dieta especial, o senhor sabe. Como é que eu ia matar a minha mulher?

- Então – ajudou o delegado – matou o amante dela?

- O homem tornou a abanar a cabeça:

- Também não. O amante era um sargento, que foi transferido e está longe. Além do mais eu só descobri o caso depois que ele viajou. Li tudo. Sei até uma de cor, a pior delas...

O delegado calava-se, sem entender esperando o resto.

E o resto veio:




- Cada carta! Se cada carta daquelas tivesse vida, eu matava, de uma em uma. Fazia até vergonha – parecia coisa de livro. Pensei em tomar um avião e liquidar com o sargento. Mas não tenho saúde para andar de avião. Pensei em matar um colega dele, aqui mesmo, para eles tomarem ensino e não transviarem mulher alheia. Mas tive receio de enfrentar a corporação toda – o senhor sabe como eles são unidos. Tinha, entretanto que dar um jeito. Já tinha medo de acabar ficando doido. Não tirava aquelas cartas da cabeça; nos dia s em que não chegava uma, ficava aflito, mais aflito do que ela, que era a destinatária. Tinha que liquidar aquilo, não era? E hoje, afinal, carreguei o revólver, esperei a hora e, quando vi o desgraçado apontar do outro lado da rua, fui para casa, me escondi atrás da porta do quarto, esperando.

- O amante? – indagou o delegado, estupidamente.

O homem se irritou:

- Não, senhor. Não falei que era o amante? Porém tinha culpa nas cartas. O sargento escrevia – mas era ele que trazia. Quase todo dia estava ali na porta, risonho, com o desgraçado do envelope na mão. Apontei o revólver e atirei três vezes. Ele caiu sem falar. Não, não era o amante, seu delegado. Não era o amante. Mas era o carteiro.






Crônica editada para fins didáticos por Prof. Jerônimo

Setembro 2012*