06/11/2012

UM ESCRITOR NASCE E MORRE-Carlos Drummond de Andrade

I

Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas, umas das outras, e que se chamava Turmalinas. A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inelutável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel, bonecos de pau). A igreja também era velha, porém não tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci: nasci na sala do 3º ano, sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco riscos representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão avançou para a carteira à procura de um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas ao Polo Norte.
É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, inclusive o naufrágio e a visita ao vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo, e a mão veloz tropeçando sobre complicações ortográficas, mas passava adiante. Isso durou talvez um quarto de hora, e valeu-me a interpelação de D. Emerenciana :
— Juquita, que que você está fazendo?
O rosto ficou mais quente, não respondi. Ela insistiu:
— Me dá esse papel aí… Me dá aqui.
Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. D. Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:
— Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique, mostrou que está aproveitando bem as aulas.
Uma pausa, e rematou:
— Continue, Juquita. Você ainda será um grande escritor.
A maioria, na sala, não avaliava o que fosse um grande escritor. Eu próprio não avaliava. Mas sabia que no Rio de Janeiro havia um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande escritor, e em meus nove anos achei que a professora me comparava a Rui Barbosa.
A viagem ao Polo foi cuidadosamente destacada do caderno onde se esboçara, e conduzida em triunfo para casa. Minha mãe, naturalmente inclinada à sobrestimação de meus talentos, julgou-me predestinado. Meu pai, homem simples, de bom-senso integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho. Ganhei uma assinatura do Tico-Tico, presente régio naqueles tempos. Naquelas brenhas, e passei a escrever contos, dramas, romances, poesias e uma história da guerra do Paraguai, abandonada no primeiro capitulo para alívio do Marechal Lopez.

II

Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da Aurora Ginasial, onde um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão "tímidas cecéns", que me indignou. Cá fora, revistas literárias passaram a abrigar-me com assiduidade. Em uma delas meu retrato apareceu, com adjetivos. Não me pagavam nada, nem eu podia admitir que literatura se vendesse ou se comprasse. Quantas vezes meu coração bateu quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado, ainda cheirando a tinta de impressão! Publicou… Não publicou… E sempre a descoberta do meu trabalho, ainda em plena rua, despertava a sensação incômoda do homem que foi encontrado nu e não teve tempo de cobrir as partes pudendas. Eu escondia meu crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um segredo de masturbação. Havia semanas em que o Fon-Fon!, o Para Todos, a Careta e a Revista da Semana publicavam simultaneamente trabalhos de minha humilde lavra, todos ou quase todos poemas em prosa, em que me especializara. Nem sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e então o copo de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de ir para a pensão, sacrificava-se com galanteria às belas-letras.
Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei de evidente notoriedade, a que faltou, entretanto, para duração, certo trabalho de jardinagem. É verdade que Turmalinas me compreendia pouco, e eu a compreendia menos. Meus requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em que a hematita calçava as ruas, dando às almas uma rigidez triste. Entretanto, meu nome em letra de fôrma comovia a pequena cidade, e dava-lhe esperança de que o meu talento viesse a resgatar o melancólico abandono em que, anos a fio, ela se arrastava, com o progresso a 50 quilômetros de distância e cabritos pastando na rua.
Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá ninguém me escreveu, pedindo para fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou morreram. O escritor tornou-se urbano.

III

Publiquei três livros, que foram extremamente louvados por meus companheiros de geração e de pensão, e que os críticos acadêmicos olharam com desprezo. Dois volumes de contos e um de poemas. Distribuí as edições entre jornais, amigos, pessoas que me pediram, e mulheres a quem eu desejava impressionar.
Sobretudo entre as últimas. Minha tática, de resto bem simples, consistia em jamais pronunciar ou sugerir a palavra literatura. Eu não era um literato que se anunciava, mas um homem que, no fundo, sofria por saber-se literato. Minha literatura assumia feição estranha, com alguma coisa de nativo e contrariado na origem, mas vegetando não obstante.
— O senhor escreve coisas lindíssimas, eu sei…
— Calúnia de meus inimigos. Infelizmente, é impossível viver sem fazer inimigos. Eles é que espalham isso, não acredite…
Meu sorriso ambíguo, de dentes não suficientemente íntegros (ganhei fama de irônico por causa do sorriso envergonhado) sublinhava a intenção discreta da negativa.
O sujeito afastava-se, impressionado. Muitas reputações nacionais não se estabelecem de outro modo. Eu escrevia.

IV

Escrevia realmente para que, escrevia por quê? Autor, tipógrafo e público não saberiam responder. Eu não tinha projetos. Não tinha esperanças. A forma redonda ou quadrada do mundo me era indiferente. A maior ou menor gordura dos homens, sua maior ou menor fome não me preocupavam. Sabia que os homens existem, que viver não é fácil, que para mim próprio viver não era fácil, e nada disso contaminava meus escritos. Dessa incontaminação brotara, mesmo, certa vaidade. "Artista puro", murmurava dentro de mim a vozinha orgulhosa. "Não traia o espírito", acrescentava outra voz interior (borborigmo, talvez). Como o espírito não protestasse, eu me atribuía essa dignidade exemplar, feita de gratuidade absoluta. E escrevia. Rente a meu ombro, outros rapazes faziam o mesmo. E não queríamos nada, não esperávamos nada. Éramos muito felizes, embora não soubéssemos, como acontece geralmente.
O meu, o nosso individualismo fundamental proibia-nos o aconchego das igrejinhas. Éramos ferozmente solitários. Em cada Estado do Brasil, uma academia de letras reunia os gregários, distribuía louros inofensivos. Esses louros repugnavam-me, e os acadêmicos, geralmente pessoas sem complexidade, eram a meus olhos monstros de intolerância, inveja, malícia e incompreensão, intensamente misturadas. O fato de terem quase todos mais de 45 anos apenas adoçava esse sentimento de repulsa, para introduzir nele um grão de piedade triste. Em verdade, ter mais de 45 anos era não somente absurdo como prova de extrema infelicidade. Até certo ponto, os acadêmicos mereciam simpatia. Como os dromedários, animais estranhos que não podem ser responsabilizados pelo gênero de vida que lhes impõe o vício de nascença.
Fugindo aos mais velhos, seria natural que nos ligássemos uns aos outros, os de 20 a 25 anos. Cultivávamos mais ou menos os mesmos preconceitos. As mesmas fobias em cada um de nós. Desgraçadamente, elas nos impunham o cauteloso afastamento recíproco, e nossas conversas de bar, noite afora, tinham traços de ferocidade e autoflagelação. Entretanto…
Licurgo, que compusera comigo o "Poema do Cubo de Éter", descobriu certa noite o tomismo, e eu o expulsei de minha convivência. Mas, sua voz, continuou pregando os novos tempos, perturbando almas sedentas de verdade e metafísica.
Aleixanor, tendo comprado num sebo as Cartas aos Operários Americanos, de Lenine, e começando a colaborar no Grito Proletário, sofreu de minha parte uma campanha de descrédito intelectual. Voltou-se para a ação política, fundou sindicatos, escreveu e distribuiu manifestos, e desfrutou de certa notoriedade até o golpe de 35, quando emudeceu.
A poetisa Laura Brioche fundou um Clube de Psicanálise, que procurei desmoralizar na primeira reunião, introduzindo sub-repticiamente entre os sócios, antes da votação dos estatutos, volumosa quantidade de uísque, genebra e gim. A sessão dissolveu-se em álcool, mas restaram aqui e ali grupos de bem-aventurados que se entretinham na interpretação onírica e confrontavam gravemente seus respectivos complexos, recalques e ambivalências.
Fundaram-se sucessivamente, a Associação dos Amigos dos Livros de História, a Academia dos Gramáticos de Ouro Preto, um Curso de Alimentação Racional, a Sociedade de Aculturação Ário-Africana, o Grupo Deus-Pátria-Justiça-Ensino Profissional, o Clube Esperantista Limitado, o Instituto de Genética.
Todos, em redor de mim, se iam afirmando, fixando.
Todos optavam. Nos jornais, passavam do suplemento de domingo à página editorial. Alguns recebiam manifestações de apreço, outros eram chamados a trabalhar em gabinetes de secretários de Estado. Vários compraram lotes, começaram a edificar. Um deles, extraordinário, conquistou um cartório. A floração de filhos, vitoriosos em concursos de puericultura, afirmava o rumo seguro de minha geração.
Eu perseguia o mito literário, implacavelmente, mas, sem fé. Nunca meus poemas foram mais belos, meus contos e crônicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão, solidão… Era só o que havia em torno a mim, dentro em mim. Era como se eu morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse ficando deserta. Algum tempo mais, não haveria ninguém para dirigir os sinais luminosos nas esquinas, dar corda aos relógios, velocidade aos bondes, carne, pão e fruta às casas. De resto, para que bondes, relógios?… Já não havia ninguém, todos se haviam mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e eu passeava lugubremente minha solidão nas ruas que ressoavam a meu passo, ruas que outrora me eram familiares, e agora pareciam escurecer, mudar de forma, de cheiro: de tal modo estavam ligadas a uma época, uma geração, um estado de espírito que se decompunham… Tudo ia escurecendo… escurecendo… Mas eu andava, eu continuava, eu não queria acreditar…
Risquei um fósforo, já sob a escuridão absoluta, e na lâmpada que minhas mãos em concha formavam, percebi que tinha feito 30 anos. Então morri. Dou minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto.



Do livro Contos de aprendiz (1951)

 


Nenhum comentário: