09/06/2013

Uma questão de interpretação (Itália) PAMPLONA, Rosane




Havia certa vez, em certo reino, um mosteiro habitado por monges jovens e idosos, que passavam o dia em preces, contemplações e estudos.
Um dia, um novo rei subiu ao trono e quis conhecer melhor seus domínios.
Ao passar pelo mosteiro, ficou maravilhado com os jardins e a paisagem do lugar. Imediatamente cobiçou o mosteiro para si, já pensando em transformá-lo em residência de veraneio.
No entanto, não podia expulsar assim, sumariamente, os religiosos. Isso o indisporia com seus súditos e ministros. Resolveu, então, conseguir o que queria de modo mais sutil.
Proclamou que desconfiava de que aqueles monges não tivessem, ali, a austeridade e a vida dura necessárias para ampliar seus conhecimentos. Assim, seria melhor saírem de lá e mendigarem pelas aldeias. Para comprovar que os monges eram ignorantes, promoveria um debate. Os monges poderiam escolher um dentre eles para debater com o sumo sacerdote da corte. Se o sacerdote ganhasse o debate, ficariam comprovadas as desconfianças do rei, e os monges seriam expulsos. Mas se, porventura, o sacerdote viesse a reconhecer sua derrota, então os monges ganhariam o direito de habitar o monastério para sempre.
Os monges tremeram ao saber da resolução do rei. O sumo sacerdote era famoso por seus conhecimentos, sendo especialista em filosofia, teologia e todas as outras ciências da época. Convocaram uma reunião e tentaram decidir quem seria o debatedor. Porém, nenhum dos monges se propunha a tão difícil tarefa. A reunião estava num momento de impasse, quando o jardineiro do convento, um homem muito simples, apresentou-se como voluntário. Houve um murmúrio de desaprovação, mas o monge superior foi prático:
– Não temos voluntário algum. Isso quer dizer que, se não há outra saída, esta é a única saída.
E no dia marcado para o debate, o jardineiro, acompanhado por alguns monges, apresentou-se no palácio, onde já o esperavam o rei, o sacerdote e todos os homens doutos e poderosos da corte.
Teve início o debate. O sacerdote prometera a si mesmo que derrotaria o adversário sem nem sequer pronunciar uma palavra. Depois de olhá-lo com desprezo, apontou o dedo para cima. O jardineiro, sem se perturbar, apontou o dedo para o chão.
O sacerdote pareceu ficar desconcertado. Mostrou-lhe então um dedo, diante de seu nariz. O jardineiro não teve dúvidas: mostrou-lhe os cinco dedos, com a mão toda aberta.
O sacerdote titubeou. Com uma expressão de raiva e desespero, tirou do bolso uma laranja. O jardineiro, muito tranqüilo, tirou do bolso um pãozinho.
O sacerdote empalideceu e pediu ao rei que encerrasse o debate. Ele reconhecia a derrota e declarava que nunca encontrara um oponente tão sábio.
O rei foi obrigado a cumprir sua palavra, e assinou o compromisso de que os monges conservariam o monastério para sempre. Assim que os vencedores deixaram o palácio, todos se reuniram com o sacerdote, querendo que ele explicasse, o que, afinal, tinha sido discutido.
– Quando apontei o dedo para cima – disse o sacerdote –, quis declarar que só a sabedoria dos céus é o que conta neste mundo. Mas ele, apontando para a terra, rebateu dizendo que, embora não possamos deixar de considerar os céus, somos homens e vivemos na terra. Então, mostrando-lhe um único dedo, argumentei que somos frágeis, pois estamos sozinhos. E ele sabiamente me fez pensar que não, que estamos cercados por outros homens, nossos irmãos. Finalmente, ao mostrar a laranja, rebati suas idéias, lembrando-o de que a natureza é mais forte do que o homem, pois sabe criar coisas que ele jamais criaria. Foi aí que ele me deu o golpe de misericórdia: ao mostrar-me o pão, lembrou-me de que o homem é capaz de conhecer e modificar a natureza, criando obras que, sozinha, ela não pode fazer.
Todos ficaram estupefatos com a sabedoria revelada pelos monges.
Enquanto isso, no monastério, os monges se reuniam ao redor do jardineiro, que explicava:
– Foi muito simples. Quando ele apontou para cima, mostrando que ia chover, eu mostrei-lhe o chão, dizendo que seria bom, pois a terra necessita de chuva. Depois ele me pareceu aborrecido e me mostrou um calo no seu dedo. Querendo ser gentil, mostrei-lhe minha mão toda, para que ele visse que isso não tem importância: eu tenho calos em todos os dedos! E quando ele tirou a laranja do bolso, pensei que fosse hora do lanche e peguei meu pão.

PAMPLONA, Rosane. O homem que contava histórias. São Paulo: Brinque-Book, 2005. p.28-31.

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