20/08/2013

Palavra e Ficcionalização: Um Caminho para o Ensino da Linguagem Oral Bernard Schneuwly


 

 

A tese defendida por Schneuwly é de que o ensino do oral na escola, em língua materna, pode se dar segundo um caminho que implica a construção de uma relação nova com a linguagem. Nesse sentido, a linguagem se insere num enfoque mais geral, conforme resume Vygotsky: "o aluno tem acesso a um nível superior da linguagem, reorganizando, por isso mesmo, seu funcionamento psíquico superior". Desenvolver essa linha de pensamento passa pelas seguintes questões: as representações habituais do oral e de seu ensino; a concepção de oralidade; as finalidades do ensino da língua materna; uma nova concepção de desenvolvimento; e uma visão dialética do desenvolvimento da linguagem.

Algumas concepções usuais sobre o oral e seu ensino

A partir de entrevistas com professores-estudantes de Ciências da Educação sobre a concepção do oral, o autor organizou as respostas em três grupos: a) o oral como materialidade; b) o oral como espontaneidade; c) o oral como norma. A análise destas entrevistas revelou o que é o oral para os professores. Conforme Schneuwly, há uma complexa sedimentação da história do ensino do francês, apontando para uma visão de língua como norma, para a dependência do oral em relação à norma escrita, mas também é visto como lugar privilegiado da espontaneidade e da liberação. Poder-se-ia dizer que o oral é, por um lado, aquele em que o aluno se exprime espontaneamente, no qual não existe escrita, por outro lado, o oral cotidiano através do qual se comunicam professores e alunos. Para o autor, nem um nem outro parece suscetíveis de se tornarem objetos de ensino: o oral puro escapa de qualquer intervenção sistemática; aprende-se naturalmente, na própria situação. O oral que se aprende é o oral da escrita.

Abordagens do ensino que decorrem da concepção usual de oral

Dada a idealização da escrita como forma perfeita da língua, a fala só pode ser concebida de duas formas: seja como tendente necessariamente à forma ideal, fundindo oral e escrita; seja como fundamentalmente diferente da escrita em sua forma e sua função. Nos dois casos, o oral é concebido como um todo homogêneo que se confunde com a escrita ou se opõem a ela. Vejamos algumas dessas abordagens:

A primeira, o desenvolvimento do francês oral elevado propõe-se a melhorar globalmente a linguagem dos alunos, levando-os a um falar elevado. O conteúdo lingüístico dessa abordagem comporta "um conjunto de variantes elevadas, de ordem fonológica e morfológica". Esse procedimento arrisca-se a levar a um movimento "supernormalizante".

A segunda abordagem enfoca a expressão oral como uma oportunidade de expressão de si. Essa abordagem, além de não definir objetivos pedagógicos e didáticos, apresenta dois outros aspectos problemáticos: a dimensão comunicativa da expressão oral e a inclusão expressa de conteúdos que são do domínio da esfera estritamente privada, introduzindo assim uma confusão quanto ao papel da escola.

Partir das finalidades do ensino de língua materna: qual concepção do oral?

Considerando que aprender uma língua é aprender a comunicar, o autor traça a finalidade do ensino da língua a partir dos seguintes princípios: levar os alunos a conhecer e dominar sua língua; desenvolver, nos alunos, uma relação consciente e voluntária com seu próprio comportamento linguístico, oferecendo-lhes instrumentos para melhorar suas capacidades de escrever e de falar; construir, com eles, uma representação das atividades de escrita e de fala, em situações complexas, como produto de um trabalho de lenta elaboração.

Isso implica uma concepção mais rica e complexa do oral e uma relação mais dialética entre oral e escrita. Não existe o oral, mas os orais, em múltiplas formas, que entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: exposição oral, teatro, leitura, debates, conversação cotidiana. Existem práticas de linguagem muito diferenciadas, que se dão pelo uso da palavra, mas também por meio da escrita, e são essas práticas que podem se tornar objetos de um trabalho escolar.

De modo geral, as capacidades que operam no comportamento verbal não podem ser respondidas, pois, não há capacidades orais independentes das situações e das condições de comunicação em que se atualizam. É preciso, portanto, escolher uma entrada mais precisa, um ponto de vista que, há um só tempo, torne possíveis o enfoque e a descrição de objetos e permita a intervenção didática.

A entrada que o autor privilegiou foi a dos gêneros textuais, pois são, a um só tempo, complexos e heterogêneos produtos sócio-históricos, definidos empiricamente, além de serem instrumentos semióticos para a ação de linguagem.

Definir os gêneros textuais consiste em encará-los como instrumentos culturalmente forjados. Psicologicamente, um instrumento tem duas dimensões: por um lado, ele é um artefato material ou simbólico que materializa a finalidade a que serve, e, por outro, constitui um esquema de uso que contém a possibilidade de agir numa situação.

Conforme Bakhtin, podem-se definir três dimensões que formam a identidade de um gênero: o que é dizível por meio dele (conteúdo temático), a forma de organização do dito (a estrutura composicional) e os meios linguísticos que operam para dizê-lo (o estilo).

O gênero desempenha o papel de interface entre os interlocutores: ele é um instrumento de comunicação, à medida que define, para o enunciador, o que é dizível e a forma de dizê-lo e, para o destinatário, o "horizonte de expectativas".

Sendo assim, o autor define o que constitui o objeto do desenvolvimento de linguagem: é saber falar, não importa em que língua, é dominar os gêneros que nela emergiram historicamente, dos mais simples aos mais complexos.
Outros pontos de vista poderiam ter sido adotados: operações comunicativas, atos de fala, etnometodologias, tipos de discurso. De certa maneira, eles se implicam mutuamente: uma etnometodologia, por exemplo, está constituída por atos de fala, eles próprios fundados por operações comunicativa; ao mesmo tempo, as etnometodologias inscrevem-se nos gêneros textuais.

Não há nenhuma dimensão de linguagem que permitiria definir de maneira uniforme o oral em relação à escrita. O oral não existe; existem os orais, atividades de linguagem realizadas oralmente, gêneros que se praticam essencialmente na oralidade. Os meios linguísticos diferem fundamentalmente; as estruturas sintáticas e textuais são diferentes; a utilização da voz também se faz de maneira diversa; e igualmente a relação com a escrita é, em cada situação, específica. Trabalhar os orais pode dar acesso ao aluno a uma gama de atividades de linguagem e, assim, desenvolver capacidades de linguagem diversas.

Questões de desenvolvimento

Nos anos de 1970, no Quebec e na Bélgica, experimentou-se uma abordagem que tentou desenvolver as capacidades orais, criando situações de comunicação diversificadas e variando sistematicamente os parâmetros contextuais, instaurando, assim, restrições às quais os alunos deveriam adaptar-se, desenvolvendo novas estratégias comunicativas. As situações propostas exigem a operação de estratégias, mas sem que seja proposto um trabalho sistemático, visando instrumentalizar os alunos para o domínio dessas situações. Essa abordagem comunicativa estrita sustenta que situações comunicativas reais e variadas são suficientes para desenvolver as habilidades.

Outra forma de abordar a discussão sobre o desenvolvimento é estendendo para a reflexão sobre a aquisição, desenvolvimento e aprendizagem, em particular, sobre o que é o objeto da aquisição, do desenvolvimento, da aprendizagem: trata-se unicamente de automatismos da linguagem? Ou também da relação que estabelecemos com nossa língua e com a linguagem em geral?

Referindo-se a Vygotsky que coloca a educação e, particularmente, o ensino como um desenvolvimento artificial do ser humano, o autor considera que a forma escolar de intervenção educativa é uma condição necessária para o aparecimento de certas formas cognitivas complexas, ligadas a técnicas culturais particularmente elaboradas e cujo acesso implica lugares sociais particulares de aprendizagem. Esta tese considera que o desenvolvimento é restringido por seu resultado; já é pré-programado, não pelo interior, mas pelo exterior. Contudo, essa forma não define inteiramente o desenvolvimento, mas o coloca sob uma tensão que não pode ser definida a partir do próprio desenvolvimento – automovimento – mas por uma interação entre esse desenvolvimento e a forma à qual ele se dirige.

Uma outra maneira de pensar o desenvolvimento parte da premissa de que toda a capacidade humana é construída pela apropriação de instrumentos semióticos. O sujeito que age sobre o mundo com a ajuda de instrumentos que são ferramentas psicológicas ou semióticas constrói novas funções psíquicas concebidas como transformações dos próprios processos psíquicos pela integração desses novos instrumentos. Por essa concepção, o contexto, a intervenção educativa e o ensino não podem ser meramente concebidos como "alimentação". A intervenção educativa dá uma forma particular ao desenvolvimento porque coloca à disposição, em termos de instrumentalização do desenvolvimento da criança, instrumentos semióticos que lhe permitem construir e reconstruir suas próprias funções psíquicas. Esse tipo de abordagem é considerado como interacionismo social e instrumental (semiótico).

Para Schneuwly é certo que aprendizagem em meio escolar participa grandemente da apropriação de uma cultura de comunicação. Assim, o objeto do desenvolvimento só pode ser múltiplo, heterogêneo e, sobretudo, complexo.

O desenvolvimento e o ensino da linguagem oral: a necessidade de ficcionalização

A tradição escolar é pouco desenvolvida no ensino do oral e os conhecimentos sobre o desenvolvimento da linguagem oral na idade escolar são muito limitados.

Vygotsky descreveu o papel da escola como sendo o de elevar os alunos do diálogo "natural" ao monólogo "artificial"; trata-se de levar os alunos das formas de produção oral auto-reguladas, cotidianas e imediatas a outras mais definidas do exterior, mais formais e mediatas. É precisamente a escola que produz e pressupõe, para seu funcionamento, modos de comunicação mais fortemente formalizados e convencionalizados, o que não exclui a continuação paralela dos outros modos cotidianos.

As formas cotidianas de produção oral funcionam, principalmente, na forma de reação imediata à palavra dos outros interlocutores presentes; portanto, a gestão da palavra é coletiva; a palavra do outro constitui o ponto de partida da palavra própria. Ainda que inscrita numa situação de imediatez, pelo fato de que a produção oral se dá em presença de outros, as formas institucionais do oral implicam outros modos de gestão que são essencialmente individuais. Essas palavras podem ser integradas de uma forma enunciativa explícita no discurso próprio; a estrutura do discurso é o resultado de uma intensa ação recíproca entre gestão local e gestão mais global do discurso. Isso pressupõe o domínio de instrumentos semióticos complexos, que podem ser aqueles das formas cotidianas, mas utilizados de outra maneira, ou podem ser específicos, ligados às formas institucionais de comunicação oral.

Para o autor, toda atividade de linguagem complexa supõe uma ficcionalização, uma representação puramente interna, cognitiva, da situação de interação social. A modelização dessa representação isola quatro parâmetros da produção: enunciador, destinatário, finalidade ou objetivo e lugar social. A construção dessa representação é uma atividade produtiva cujos efeitos refletem-se na produção, manifestados pelo tratamento inerente à língua. A ficcionalização revela-se, então, como uma geradora da "forma do conteúdo" do texto: ela é o motor da construção da base tipo de orientação da produção, colocando certas restrições sobre a escolha do gênero discursivo.

As formas institucionais implicam sempre uma parte de ficcionalização, à medida que os parâmetros contextuais não estão dados pela situação imediata, mas pré-definidos institucionalmente e materializadas no próprio gênero. O enunciador, o destinatário, lugar social são parcialmente instâncias físicas e sociais da produção e da recepção imediatas e devem ser ficcionalizados para aparecer no texto produzido, em forma de traços diversos. Essa palavra fortemente definida e regulada do exterior permite e pede uma intervenção didática, portanto, é sobre ela que deve incidir prioritariamente o ensino do oral. Nesse sentido, o trabalho sobre a ficcionalização parece constituir uma dimensão essencial do trabalho sobre o oral.

Concluindo, o autor afirma que há ficcionalização nos gêneros complexos a serem trabalhados em sala de aula. A particularidade do oral em relação à escrita reside no fato de que essa ficcionalização deve se articular com uma representação do aqui e agora, gerenciada simultaneamente, graças aos meios de linguagem que são o gesto, a mímica, a corporalidade, a prosódia. Palavra e ficcionalização constituem os dois vetores a partir dos quais se constroem as novas capacidades de linguagem oral. O fato de que essa construção não pode se dar sem uma intervenção da escrita mostra o poder desse instrumento e prova que é necessário que se forje uma concepção dialética dos diferentes aspectos do ensino da língua materna.

 

Maria Angélica Cardoso
Pedagoga pela UFMS, especialista em Formação Docente pela UNIDERP, mestre em Educação pela UFMS, doutoranda em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP; membro integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas HISTEDBR.

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