06/08/2013

História para o Flávio - Rachel de Queiróz

Belíssima história dessa escritora!

                "Moravam na serra do Estevão um velho por nome Luiz Gonçalves, caçador e famoso matador de onças. Fazendo  as contas, dizia que só onça tigre já matara onze, das pixunas vinte e seis, das pintadas quarenta; maçaroca¹,  suçuarana², onça-vermelha nem contava — para ele já nem era onça, era gato.(...)
                Mestre Luiz queria bem as duas coisas no mundo: à sua espingarda Lazarina, que nunca lhe fizera uma vergonha, e ao seu filho Luizinho, agora com quinze anos, e que o pai andava ensinando nas artes de caçador. (...)
                Ora, um dia mestre Luís  recebeu recado do coronel Zé Marinho do Barro vermelho para que fosse matar uma pintada que lhe andava comendo os carneiros e até mesmo se atrevera a sangrar um bezerro no pátio da fazenda. (...) assim que a noite fechou ele amarrou um cabrito mesmo no pé do serrote onde maldava³ mais  que a onça pintada morasse, e ficou na espera junto com o Luizinho e o cachorro onceiro.
                (...) até que, com uma hora de escalar serrote, deu de repente com a entrada da furna4.
                O cachorro pôs-se a gemer, ansioso, e de lá de dentro o esturro5 da bicha acuada foi respondendo. Mestre Luís preparou a forquilha6, o chuço, a faca. Mas quando se voltou para chamar o Luizinho viu que o menino apavorado se encolhia num desvão7 de pedra , amarelo de medo.
                Aí deu no velho, uma raiva danada e ele resolveu ensinar o filho de uma vez por todas.
Chamou de manso:
—Vem cá Luís, não tem medo, quem vai matar a onça sou eu.
                Depois de muito rogo o menino chegou, tremendo. O velho de supetão jogou as armas na boca da furna, e com um pescoção empurrou para dentro o Luizinho. Pegou um pedaço de laje, tapou a entrada das lapa8,,, e gritou para o rapaz:
—Filho meu não tem medo de onça, seu mal- ensinado! Vou voltar para minha rede de espera, e não me apareça de volta sem levar o couro da pintada!
                Realmente ao raiar do dia Luizinho apareceu. No ombro trazia as armas, no chão arrastava o couro da onça. Tinha  a cara tão lanhada9 das unhas da fera que quase não se lhe via a feição. A roupa virara molambo10, e o chapéu se perdera. Quando ele viu o pai, foi levantando a mão para tomar-lhe a benção. Mas no meio se arrependeu.
                — A benção não senhor, que nunca mais lhe tomo a benção. Benção se toma ao pai, e quem tranca o filho numa furna com uma onça não é pai, é carrasco! Tai o couro  da pintada, e o senhor arranje outro, porque nunca mais me verá.
                Dito isso rebolou o couro nos pés do velho, deu meia- volta e saiu correndo, sem nem ao menos olhar para trás.(...)
QUEIROZ, Rachel de. O brasileiro perplexo: histórias e crônicas.
Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963
1.       Suçuarana de cor diferente de usual
2.       Mamífero carnívoro de coloração amarelo-avermelhada
3.       Suspeitava
4.       Caverna formada de blocos de pedra
5.       Urro de onça
6.       Vara bifurcada
7.       Esconderijo
8.       Grande pedra que forma um abrigo
9.       Cortada, ferida, arranhada
10.    Farrapo

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